Como desconstruir um super-herói

Como desconstruir um super-herói

O mundo tem hoje duas paixões: o desconstrutivismo e os super-heróis. Duas coisas diametralmente opostas como, digamos, Reed Richards e Doutor Destino. Mas é só aparência. Gente que voa por aí de colã é muito parecida com gente que quer desconstruir o mundo. Em comum, o mesmo desejo de salvar a sociedade dela mesma, como se alguém tivesse pedido. Clark Kent e Jacques Derrida poderiam ser colegas na Liga da Justiça, mas penso que o filósofo francês, o Terrível Doutor Desconstrução, se daria muito melhor com o Ozymandias de “Watchmen”. É sério: no futuro, muito historiador vai rolar no chão de tanto gargalhar com o século 21. Se futuro houver, é claro. Ainda há dúvidas.

Seja como for, a mistura de desconstrutivismo com super-heroísmo produziu três séries excelentes e que valem a maratona: “Doom Patrol” (HBO), “Umbrella Academy” (Netflix) e “The Boys” (Amazon). As três estão na segunda temporada, o que demonstra que a desconstrução, além de fazer sucesso na facul, também é um ramo bastante lucrativo.

Doom Patrol

Desde que foi criada em 1963 pelo roteirista Arnold Drake, “Doom Patrol” ocupa um dos cantos mais estranhos da DC Comics, editora famosa pelos personagens esquisitos. Mas foi o escritor escocês Grant Morrison quem deixou o grupo realmente doido a partir de 1993. Morrison criou Crazy Jane (que tem 64 personalidades diferentes, cada uma com um super-poder), o vilão Mr. Nobody (líder da Irmandade Dadá) e Danny the Street, uma rua consciente. A série da HBO junta várias fases do grupo em uma nova formação, mas a estranheza está lá e as aventuras são sempre surpreendentes. A equipe tem até uma versão bagaceira do Cyborg, aquele mesmo personagem que aparece no filme da Liga da Justiça. Ninguém sabe exatamente o que o Cyborg-RedeTV está fazendo em Doom Patrol, mas, apesar dele, a série merece ser assistida. Um detalhe curioso é que Danny The Street era uma rua gay nas HQs, mas agora é uma rua não-binária, o que faz muito mais sentido, especialmente quando se é uma rua.

Umbrella Academy

“Umbrella Academy”, da Netflix, deve muito a Doom Patrol. O roteirista Gerard Way, criador da HQ com o brasileiro Gabriel Bá, é fã declarado de Grant Morrison e se inspirou nos trabalhos do escocês para inventar sua família disfuncional de super-seres. A série tem viagem no tempo, realidade paralela, vilões bizarros e personagens extremamente charmosos, como Vanya (uma espécie de “Fênix Negra” sensível), Luther (que é meio gorila),  Allison (o poder dela é transformar rumores em verdades, como se ela fosse o Whatsapp) e, especialmente, Número Cinco (que apesar de ter apenas 13 anos é o assassino mais letal e eficiente da história). A primeira temporada é muito boa, mas a segunda, que se passa numa versão alternativa de Dallas, em 1963, é ainda melhor.

The Boys

The Boys (2019), Eric Kripke

Já “The Boys”, do Amazon Prime Video, é tudo o que a série “Watchmen” poderia ter sido caso o superestimado roteirista Damon Lindelof tivesse entendido a história original do Alan Moore. Lindelof transformou super-heróis em combatentes da Ku Klux Klan, pervertendo a premissa da HQ. Moore associa, com razão, o vigilantismo ao fascismo e é por isso que o vilão da trama, Ozymandias, é um super-herói e não um supervilão.

“The Boys”, criado por Garth Ennis (o mesmo de “Preacher”), leva a ideia do super-fascista ainda mais longe do que a HQ de Moore. Os super-heróis são psicopatas de capas instrumentalizados por uma empresa transnacional que só se interessa por riqueza e poder. O grupo de supers, “Os Sete”, é moldado sobre a “Liga da Justiça”, mas a empresa que é “dona” dos heróis, a Vought International, é direitinho a Marvel-Disney.

O divertido é que o grupo de anti-heróis que combate os supers também não é exatamente confiável. Eles são todos loucos e perigosos, especialmente Billy Butcher, o truculento líder da gang. Mas o personagem mais complexo e fascinante é, claro, o vilão da trama: Homelander, uma versão distorcida do Superman. A série é diversão garantida para quem não desce as calças e pisa em cima quando lê que o Batman é um miliciano.

Além de muito bem escritas e desenvolvidas, essas três séries apontam para o futuro desse subgênero do cinema de ação. O que vai dar o tom é a desconstrução — mas ela não precisa rimar com encheção.