Ulisses, de James Joyce: a primeira parte, passo a passo (conclusão)

Ulisses, de James Joyce: a primeira parte, passo a passo (conclusão)

Na sequência da primeira parte deste ensaio sobre “Ulisses”, Dedalus e Mulligan saem da plataforma de tiro da torre Martelo, na primeira cena do livro, e se juntam a Haines no interior da construção, para tomar o café. O diálogo entre eles é pontuado pela eloquência poética de Mulligan, enquanto certos temas o fustigam, principalmente a arte irlandesa como “o espelho rachado da criada”; imagem que parece evocar (devido ao vocábulo “criada”) a situação política da Irlanda. Os três saem finalmente para caminhar até a orla marítima. Diante da torre, Mulligan reitera seu neopaganismo e seu credo em omphalos: o umbigo. Daí a troça mordente que faz com a Trindade:

“Bem raro, ao que sei, sou um rapazinho.
Mamãe é judia, papai, passarinho,
Ao Zeca carpina meu gênio é contrário,
Saúde discípulos, saúde Calvário”.

O “livre-pensador” Dedalus considera o amigo um galhofeiro heresiarca (zombando no segundo verso do Espírito Santo), por isso junta-o a antigos contestadores da ortodoxia: Fócio, Ário, Valentim e Sibélio. De sua parte, declara a Haines que tem apenas dois senhores: a Igreja Católica Apostólica Romana e o Estado imperial britânico. Outro tema de relevo que aparece no diálogo é Shakespeare: a tese de Dedalus de que “o neto de Hamlet é o avô de Shakespeare e que ele mesmo é o espírito do próprio pai”. Haines, que associará a torre Martello ao castelo de Elsinore, fará uma analogia disso com a teologia, ao lembrar “O Filho lutando por consubstanciar-se com o Pai”. Em seguida, na praia, Dedalus se despede dos amigos.

O segundo capítulo da primeira parte (equivalente a “Nestor”, em referência à “Odisseia”) divide-se em duas cenas: primeiro encontramos Dedalus, professor, ministrando aula na biblioteca de Santa Genoveva. Em seguida o senhor Deasy — administrador da instituição, ao que parece — reúne-se com ele para acertarem o pagamento das aulas e pedir a Dedalus um favor. Com seus alunos, este começa ministrando História (a batalha de Ásculo, em 279 a.C.), tema que se desdobra numa livre associação feita por um aluno entre as palavras Pirro (o general macedônio) e píer: “O píer de Kingstown — disse Stephen. — Sim, uma ponte frustrada. As palavras desorientavam-lhe o olhar. — Como, senhor? — Comyn perguntou. — Uma ponte é por cima de um rio”.

Esta é uma imagem da situação irlandesa diante da dominação inglesa, visto que na sequência ouviremos a voz interior de Dedalus, estimulada, mourejar o seguinte: “O bobo na corte do seu senhor, tolerado e menosprezado, conquistando uma loa do senhor clemente. Por que tinham todos escolhido esse papel? Não inteiramente pelo mimo fácil. Para eles também a história era um conto como tantos outros tão ouvidos, sua terra um monte-de-socorro”.

Ulisses (tradução de Antônio Houaiss, edição Civilização Brasileira)

“Ulisses” transcorre no dia 16 de junho de 1904, época em que a Irlanda ainda estava sob o controle britânico (torna-se independente em 1916 e só será reconhecida em 1922). Stephen Dedalus é um feniano, isto é, um adepto do movimento político de separação com a Inglaterra, nação de maioria puritana. Tecedor “de vento”, associa os vencidos Pirro e Júlio César à luta de seus compatriotas. Logo após um aluno, Talbot, lê um trecho da pastoral “Lycidas”, de John Milton, sobre o afogamento do rei Eduardo na costa irlandesa em 1637. No ínterim Dedalus volta a se lembrar da mãe e de Jesus em seus monólogos, para então liberar os alunos para uma partida de hóquei. Um deles, Sargent, o detém em sala para que lhe auxilie com um exercício de álgebra, “dança mourisca, numa pantomima de caracteres, encapelados de bizarros quadrados e cubos”. E naquele menino tímido e “desgracioso” Dedalus vê a si mesmo: “Minha infância aconchega-se ao meu lado”. No mesmo período, fala em “tiranos desejosos de serem destronados”, numa clara referência, outra vez, à opressão inglesa.

É quando entra em cena o senhor Deasy, um tóri (conservador e aristocrata imperial, dono de terras) eivado pelo típico bom senso inglês. Aborda-o no instante em que, ouvindo a algazarra próxima dos meninos, Dedalus manifesta este insight: “As vozes cortantes alteavam-se-lhe ao redor de todos os lados: suas muitas formas fechavam-se-lhe em torno”, o que parece ser a própria consciência de Joyce mergulhada no torvelinho verbal de “Ulisses”. Primeiro, o senhor Deasy quer pagar o que deve a Stephen. Enquanto dialogam, o ajuste financeiro dá azo a uma reflexão de teor econômico, uma vez que, ao receber seu pagamento, o “cachorro de assalariado” Dedalus pensa em “símbolos aviltados pela cobiça e miséria”. O senhor Deasy cita Shakespeare para justificar seu apego ao dinheiro, lembrando ao professor o “mais altivo brasão de orgulho” inglês: “Paguei meu preço”. Além de sua boa consciência é também um homem cheio de presunção, pois considera os ingleses “um povo generoso” que deve também ser “justo”: “Tenho medo dessas grandes palavras — disse Stephen — que nos fazem tão infelizes”.

Novas referências históricas da contenda entre ingleses e irlandeses perpassam o trecho, centradas na questão da união (lincar com “ponte”, “píer”) ou da separação entre os dois povos, colocando-se o senhor Deasy ao lado dos unionistas. Tudo isso parece irritar Dedalus, que é nacionalista e é pró-independência: “Rouca, mascarada e armada, a convenção dos fazendeiros. O norte sinistro e a verdadeira bíblia puritana. Cocos rapados, dobrai-vos ao chão”.

Para ele o velho tóri é apenas “Um grosso escudeiro a cavalo com reluzentes botas de cano alto”, trotando para Dublin. Que, mesmo assim, pede-lhe um favor: espera que enquanto literato faça chegar aos jornais uma carta sobre a febre aftosa, cujo surto porá “embargo ao gado irlandês”. Logo em seguida o senhor Deasy não esconde seu misoginismo e seu antissemitismo, atribuindo aliás aos judeus a decadência inglesa: “Tão certo como estamos aqui os mercadores judeus já estão em seu trabalho de destruição.” A réplica sai como luva de pelica: “Mercador — disse Stephen — é quem compra barato e vende caro, seja judeu ou cristão, não é?”

Eles se separam e, enquanto caminha para a saída, Dedalus é chamado pelo senhor Deasy, que faz uma última observação de teor racista, ao perguntar-lhe porque a Irlanda nunca teve problemas com judeus. O mesmo responde, como se fosse uma piada: “Porque nunca os deixou entrar”. Vale lembrar que o protagonista de “Ulisses” será um judeu, Leopold Bloom, que abre a segunda parte do livro.

Chegamos, enfim, ao terceiro e último capítulo da primeira parte, chamado de “Proteu”, o deus grego da metamorfose. A dificuldade de leitura torna-se considerável, cedendo a prosa naturalista dos diálogos quase inteiramente ao primeiro grande monólogo de Dedalus. Sabemos que está caminhando na praia enquanto se afasta dos amigos, pois “Stephen fechou os olhos para ouvir as botinas triturar bodelha e conchas tagarelas”. “Nacheinader”: um passo após o outro. Fecha e abre os olhos, à mercê de sensações. Os sentidos todos despertos: ver, ouvir. Sentir.

Sensacionismo. Parece refletir sobre um método. Nessa coalhada verbal certas coisas emergem: as lembranças da mãe, a própria origem e a origem de Cristo, reflexões teologais (Eva, a consubstanciação), alguns parentes, até que de fato ele se aproxima do chalé de tio Richie e bate à porta. Entra e conversam: o último diálogo da primeira parte.

Ao sair da casa de tio Richie, ele passa do caminho a sua tia Sara e volta em direção a Pigeonhouse. Continua suas ruminações: renúncia às carreiras profissionais da família (juiz, general) porque “A beleza não está aí”. Reflete sobre a hipóstase, a tentação feminina, leituras e ambição literária que resulta em epifanias: “guardadas nas grandes bibliotecas do mundo (…) Alguém ali haveria de lê-las uns milhares de anos depois, um mahamanvanta”. De volta à praia, descreve a paisagem, depois tem lembranças sem fim de Paris e de um tal Kevin Egan… E chega! Não é preciso ir além disso (se é o que resta) para não nos tornar monótono. Inicia-se aqui o processo mental adotado por Poldy (Leopold Bloom) a partir do capítulo seguinte. As últimas páginas do terceiro capítulo são consumidas pelo mesmo turbilhão de evocações. Como neste exemplo pinçado ao acaso: “Seu olhar ruminava as suas boquilargas botinas, refugo nabeneinander de um janota. Contava as pregas do couro vincado dentro do qual o pé de outro se aninhara quente. Pé que bate no solo em tripúdio, pé que desamo. Mas te deliciaste quando o sapato de Esther Osvald coube em ti: garota que conheci em Paris; Tiens, quel petit pied! Amigo sólido, uma alma irmã: amor a Wilde que não ousa dizer seu nome. Ele agora me deixará. E a culpa? Como sou. Como sou. Tudo ou nada de todo”.

Reminiscências de toda ordem perfilam-se uma atrás da outra, sem necessariamente relacionar-se ou deter-se. Sem coerência, indo e voltando. A mente não para um segundo: mas não é este mesmo o nosso processo mental? Com razão, o crítico José Maria Valverde chamou essa técnica de “realismo psicológico absoluto”, pois imita nossa maneira desarticulada de pensar quando não a disciplinamos. É o estado cerebral latente, entre o sono e a consciência: semiconsciência. O saldo é o registro de tudo o que atravessa os quatro sentidos. Uma mixórdia de endoidecer. É provável que não venha ao caso jamais a descrição ou sequer a compreensão linha por linha de tal processo: seria uma enorme perda de tempo, pois não é o que importa. Qual afinal a consequência desse stream of consciousness para o célebre enredo de “Ulisses”, que começa com Stephen Dedalus, passa por Leopold Bloom e termina com Molly Bloom? Parece que nenhum. Vale por si, enquanto maneira nova e radical de captar o mundo. Uma epifania da linguagem.

E que linguagem! Associações de ideias, neologismos, palavras aglutinadas em profusão (sobretudo no terceiro capítulo), com sentido de verbos, substantivos, adjetivos: arrepanhar, lâminagume, verdemuco, sotolábio, canicarcaça, herbicaule, almiscarperfumado, vegetissombra, harpicorda, undialvo, patalear, piscideuses, expenitenciar, imo-senso, desvoar, irlandismo, abemolado, efabulado, sanguinirrajado, sanguiniflorido, cadaverijuncado, reesconder, marifrígido, mortivômito, pluterperfeito, auribrunido, marissêmen, umbilicordão, tramatrançado, uniunir, borratinta, azul-triste etc, etc. Frases: “Nuptileito, nataleito, leito mortal, espectriciriado”, “Umba, omniventrante tumba”, “Eu xinto o xeilo de xangue num iulandeixe”, “Por entre gravigomosas serpiplantas, lactífluos frutos, onde em águas fulvas folhas jazem anchas.” Ou esta, de parcimoniosa radicalidade: “Ao redor das mesas lajeadas a mixórdia de hálitos vinosos e gargantas gorgulhantes”. Apenas um aperitivo.

Sabe-se que por sob essa algaravia linguística há uma história realmente prosaisa; em sendo assim, que poderia ser contada da forma mais simples possível. A questão é que por esse caminho Joyce não seria Joyce: reprimiria o próprio gênio para ser um escritor comum, sem dar sua contribuição à literatura: a maior ambição de qualquer escritor e a maior contribuição de todas, no século 20. Mas isso pode ser apenas um equívoco de perspectiva: Joyce não estava interessado em usar a linguagem como meio para contar a história de algumas pessoas, mas a linguagem como finalidade. Quer dizer, não é a linguagem que serve a seus personagens humanos, mas eles é que servem à linguagem: a verdadeira protagonista de “Ulisses”. É só uma forma de dizer, haja vista que a filosofia estatuiu a coincidência definitiva entre o homem e sua linguagem, a partir de Ferdinand de Saussure, reafirmado pelo Neopositivismo.

Dito isto, temos um contexto cultural do qual é fruto: o escritor irlandês é apenas um caso, entre outros artistas do Modernismo: Wassily Kandinsky talvez seja seu correspondente na pintura, e talvez Arnold Schönberg na música. Quer dizer, artistas que foram às últimas consequências, libertando até o limite possível seus meios expressivos (palavras, cores, sons) de qualquer referente conhecido. Aceitando esta premissa, o leitor consegue não compreender partes inteiras da história que James Joyce nos conta, mas — ao aceitar o seu jogo — sentir ao menos a torrente verbal de “Ulisses” como um fluxo poético (o que de fato é).

Invejo sinceramente quem leu este livro e pode dizer que o entendeu, de per si. Desconfio, e não é o meu caso. Pois “Quem em lugar algum jamais lerá estas escritas palavras?”. A pergunta é do porta-voz de Joyce, Stephen Dedalus, que, tendo estudado num colégio jesuíta, tem vocação para santo: por isso requer devotos para a vida inteira, não simples leitores.  “Introibo ad altare Dei”: ele de fato conseguiu.