“Ulisses”, de James Joyce, é o livro mais aclamado do século 20: o mais revolucionário, o mais importante. Sua popularidade é curiosa, porque também é o mais difícil de se ler (para não dizer impossível, em largos trechos). É pouco provável que algum de nós o tenha entendido no confronto direto. E compreendê-lo parcialmente requer abstinência, renúncia, uma vez que pressupõe dedicação missionária. É possível, no entanto, que quem transita no meio literário tenha amigos ou conhecidos que juram tê-lo lido de cabo a rabo. Não ficaria bem a escritores e congêneres desconhecer o romance seminal dos últimos 90 anos. Mas pode-se desconfiar que a “obrigação” de o ler deve-se menos a este “dever” de ofício do que a um respeito irracional, associado ao nome de Joyce. Convém lê-lo (ou dizer que o leu) e convém até, na maioria dos casos, mentir que o compreendeu, quando na verdade trata-se apenas de submissão à força intimidadora de um ícone cultural.
De fato, compreender “Ulisses” no tête-à-tête é uma missão impossível para quase toda a gente, nada nada por uma razão muito simples: presume-se que o sucesso da tarefa é proporcional à bagagem cultural do leitor que — não é preciso pensar muito para suspeitar — deve de preferência corresponder à do próprio Joyce. Quer dizer, não basta boa vontade: além de dedicação missionária, “Ulisses” impõe certas credenciais ou nada feito. Caso o leitor atenda a apenas uma dessas condições o fracasso é líquido e certo, por óbvio. O ideal é que conheça bem vários idiomas e necessariamente os diversos temas recorrentes (como cristianismo, filosofia, história irlandesa etc.), ou não saberá o que significam, como se entrelaçam nem por quê. Em se tratando de metatexto no mais alto grau, o próprio conhecimento da tradição literária, em especial do Simbolismo talvez, pareça indispensável. E o mais determinante: penetrar a linguagem absurda que cose tudo isso. Não, não é para qualquer um. Qualquer um é quem ousa mentir, a respeito, e ser “qualquer um” não faz bem à própria imagem.
É bem provável que seus amigos ou conhecidos estejam apenas tentando enganá-lo para parecerem especiais. Pura e vazia ostentação, incapaz de se submeter à prova.
Ler “Ulisses” é uma coisa. Compreender é outra muito diferente. Pois a nossa sorte, de leitores, é que é possível romper essa barreira que parece intransponível, ainda que possamos apenas dominar o esquema geral, mas jamais cada frase ou mesmo períodos inteiros. Quase nenhum instrutor, diante de seus aprendizes, confronta nas minúcias, passo a passo, leitura e interpretação. O método facilitaria muito a vida de quem gostaria de receber alguma luz sobre literatura em geral, e sobre livros complicados como “Ulisses”. À parte isso, uma das maneiras de conhecê-lo é ler não apenas o romance, mas também interpretações sobre ele. Sinalizando que sua compreensão mais profunda pode ser produto apenas de um esforço coletivo, é um texto que demanda ostensivamente outros textos. Ao menos dos neófitos, caso não queiram, de cara, perder tempo lançando-se contra um muro de concreto reforçado. Também não é dispensável o conhecimento da obra de Joyce, em especial “O Retrato do Artista Quando Jovem”, segundo alguns o primeiro capítulo de “Ulisses”. Citações e referências amiúde encontradas neste último romance devem estar dispersas em outros livros do autor, revelando uma organicidade que já foi acusada — e que, portanto, não pode ser omitida tampouco sem dificultar (ou até inviabilizar) o empreendimento. Em suma: é preciso ser erudito e estudioso de Joyce. Não conheço ninguém que tenha as duas qualidades reunidas.
Ignorando quase tudo isso (porque essa é a situação da maioria dos leitores), tenta-se aqui uma leitura direta para demonstrar quão impenetrável é “Ulisses”.
A primeira parte do romance tem 55 páginas. É apenas a décima sétima parte de um total de 846: uma ninharia, que serve, no entanto, para o exercício proposto. Mas por que as 55 primeiras páginas? Não apenas porque é completa, a exigir muito em se tratando de “Ulisses”, diga-se. É também por outras duas razões: porque as análises da obra inteira normalmente se fazem em largas pinceladas (portanto são alheias às minúcias) e porque, segundo os editores, um livro engata ou fracassa no começo. Ali você enxerga alguma coisa, de preferência nas primeiras folhas, ou desiste. Convém o truísmo: todo começo corresponde à passagem mais crítica de um romance, podendo sentenciá-lo à glória ou ao esquecimento. Pelo visto, muitos se sentiram correspondidos nessa primeira divisão, ainda que um terço dela seja já inelegível (ou, antes, incompreensível na sua totalidade).
Passemos ao problema, baseado na seguinte pergunta: o que é possível extrair dessas 55 páginas, que correspondem à introdução de “Ulisses”? A resposta pode ser dada por uma análise descritivo-interpretativa, possível com releitura, atenção e paciência de pelo menos dois terços dela, a mais exígua de três partes. Joyce dividiu sua introdução em três capítulos: o encontro entre Buck Mulligan com Stephen Dedalus na torre Martello, aos quais se junta Haines: Buck e Dedalus conversam no mirante, em seguida toma uma refeição com Haines e, por último, descem os três à enseada próxima. No segundo capítulo temos Dedalus em sala de aula, com seus alunos; saindo dali ele se encontra com o senhor Deasy e tratam de dois assuntos: o pagamento de Dedalus e uma carta. No último capítulo, ouvimos apenas a voz interior de Dedalus, e já não entendemos bem quase nada.
Este primeiro capítulo (e “Ulisses”) começa com uma frase audaciosa: “Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha. Seu roupão amarelo, desatado, se enfunava por trás à doce brisa da manhã. Ele elevou o vaso e entoou: — Introibo ad altare Dei”.
Traduzindo, “Subirei ao altar de Deus”. E quem duvida? O helenista Mulligan é um poeta teatral, literalmente um personagem dado a declamações poéticas. É ele quem convoca à cena Stephen Dedalus, alter-ego de James Joyce que protagoniza “O Retrato do Artista Quando Jovem”: conectam-se assim os dois livros, pois trata-se, segundo Mulligan, de um (e mesmo) “jesuíta execrável”. Tem-se aqui uma continuidade umbilical entre uma obra e outra, para o que contribui a clareza estilística naturalista. O lugar onde se encontram também está dado: a plataforma de tiro da torre Martello, sobre a baía de Dublin. E em torno de quê a conversa gira? Primeiro, Buck evoca a Grécia Antiga: “Precisamos ir a Atenas”, para logo adiante denunciar outra filiação de “Ulisses”: Homero, ao evocar-lhe o epíteto “Epi oinopa pantom” (Sobre o mar escuro cor vinho). Os estudiosos chamam essa parte de “Telêmaco”, em referência a “Ilíada”. Dedalus está de luto pela mãe que acabara de morrer, o que torna sua voz interior bastante elegíaca, a perpassar todo o capítulo. Ainda nessa primeira cena Joyce começa a introduzir a voz interior de Dedalus, como neste trecho, diante do mar, no alto da torre: “Vegetissombras flutuavam silentes na paz matinal desde o topo da escada ao mar que ele contemplava. De boda para fora o espelho do mar branquejava; esporeado por precípites pés lucífugos. Colo branco do mar pardo. Ictos gêmeos, dois a dois. Mão dedilhando harpicordas fundindo-lhes os acordes geminados. Undialvas palavras acopladas tremeluzindo sobre a maré sombria”.
Essas palavras iniciam uma espécie de lamento fúnebre que perpassa os diálogos bem naturalistas, até o segundo capítulo. Depois essa linguagem torna-se dominante, adentrando-nos de vez na tessitura verbal impenetrável de “Ulisses”.