Algumas memórias que eu havia esquecido

Algumas memórias que eu havia esquecido

Uma grande verdade da vida é que o tempo passa para todo mundo, exceto para Bruna Lombardi. Pensando nisso, comecei a colocar minhas memórias no papel na esperança de que elas resultem em autobiografia ou então em autoajuda, que vende bem mais. Tomara que algum editor leia esses primeiros textos e resolva me pagar. Se não pagar, eu continuo escrevendo.

1

Cidade do México. Eu me lembro da Cidade do México. Eu comia guacamole com cerveja aguada no restaurante “Le Venganza de Montezuma”. Leon Trótski e Frida Kahlo estavam comigo. Os dois tinham bigode e barba, de maneira que eu não conseguia saber quem era quem. Um sujeito com uma picareta enorme fingia que garimpava diamantes na calçada, mas não tirava os olhos da nossa mesa. Lá fora, os nativos festejavam o Dia dos Mortos ou faziam uma revolução popular. Era difícil diferenciar uma coisa da outra, mas Trótski (ou terá sido Frida?) me ensinou um truque infalível: se o cara está com rifle é revolução, se está com violão é mariachi.

2

Berlim. Sim, eu também me lembro de Berlim. As cervejarias, as salsicharias e os bigodes ridículos. Encontrei o jovem Adolf Hitler na “Nazifascistiche Bierbrauerei”, a primeira e mais famosa cervejaria nazi-fascista da cidade. Entrei e o garçom ariano cuspiu no chão. “Nós não servimos raças inferiores aqui”, ele disse. “Ok, então me traz só a cerveja”, eu respondi. Hitler queria me vender um quadro pintado por ele. Era um castelo austríaco numa tarde de verão. Fui sincero e falei que a pintura era uma merda. Sugeri que ele tentasse funk ou hip-hop. Hitler ficou irritado e prometeu afogar o mundo em sangue e horror. Pedi licença para ir ao banheiro e deixei a conta para ele pagar.

3

 Londres. Sim, eu também me lembro de Londres. A chuva, a neblina e a comida com sabor de papelão molhado. A gastronomia inglesa ou é fervida na panela de pressão ou é assada no forno até esturricar. Os bons restaurantes costumam assar e depois ferver. Eu e Winston Churchill bebíamos Guinness no pub “The Duck and the Fuck”. Winston tentava me explicar que Evelyn Waugh era homem, apesar de se chamar Evelyn, mas eu não me convenci e disse que ia ter pelo menos três filhos. Churchill balançou a cabeça e acendeu um charuto, empesteando o pub inteiro, que foi evacuado e lacrado pelos bombeiros. Saí pela noite e me perdi no nevoeiro. Quando consegui me localizar, eu estava em Sapopemba.

4

Paris. Eu também me lembro de Paris. Eu e Jean-Paul Sartre tomávamos vinho no “Deux Escargot”, restaurante que servia apenas caramujos e caracóis. Entramos bem na hora que duas lesmas estavam de saída e conseguimos uma boa mesa, embora com as cadeiras todas melecadas. Lá fora, o vento soprava forte e vários mímicos fingiam que era um dia quente e sem brisa. Sartre era desconfiado. Sempre mantinha um olho na mulher, Simone de Beauvoir, e outro em Michel Foucault, que estava do outro lado do restaurante. A visão dele nunca foi a mesma depois disso.  “A existência é uma dor constante”, ele me disse. Sugeri que ele comprasse sapatos maiores. Na correspondência que mantive mais tarde com Albert Camus, ele me contou que eu havia mudado a vida do Jean-Paul. “O inferno são os outros, mas o paraíso são os sapatos confortáveis!”, dizia o filósofo. Ele nunca mais arrumou fãs na Sorbonne, mas fez uma boa grana na propaganda.