Arrivederci, Ennio

Arrivederci, Ennio

Fotografia: Jim Dyson / Vulture

Se me pedissem para escolher a cena de filme de que mais gosto, talvez apontasse, no susto, aquela do cemitério de “Três Homens em Conflito” (chamado, de nascença, “The Good, the Bad and the Ugly”). Vocês se recordam: Tuco — Tuco Benedicto Pacífico Juan María Ramírez, o “feio” — procura uma cova em que há um tesouro enterrado; o cemitério é de mortos da Guerra Civil dos Estados Unidos, bastante improvisado; Tuco (Eli Wallach no seu melhor papel) sabe apenas o nome falso do túmulo, o que o faz rodar deseperado entre as centenas de covas, isso ao som de The Ecstasy of Gold, composição que, vejam só, o Metallica também gravou e usava (usa?) na abertura dos seus shows.

Ou a cena dos beijos cortados em “Cinema Paradiso”? A música de fundo é, creio, Love Theme. Não me canso de a rever. Os beijos não são apenas beijos, obviamente; são a infância do personagem principal, Salvatore Di Vita, e, portanto, também a nossa; são os caminhos que Salvatore não tomou e, assim, também os caminhos que todos nós não escolhemos; são a certeza de que a vida, a nossa e a de Salvatore, é mesmo improvisada e com partes excluídas por contingências que nos doem. Os beijos resumem a siciliana Giancaldo de Salvatore — e, podemos dizer (furtando uma ideia do publicitário Renato Monteiro), também a Macondo (Aracataca) de García Márquez, a Rimini-Borgo San Giuliano de Federico Fellini, a Balbec de Proust, a Calanda de Luis Buñuel (com sua “Rompida de la Hora” da Semana Santa). Vale dizer: eles são, pelos mesmos motivos, a cidade do meu passado (que, na verdade, nunca foi inteiramente minha), Palmeiras de Goiás, sempre me deixando meio de borco com o seu peso.

Também entra na disputa de melhores cenas, com honras, aquele momento de “Era uma Vez na América” em que David “Noodles” Aaronson (Robert De Niro) retorna a Nova York, décadas depois de a ter abandonado, e volta ao cômodo em que, menino, vigiava Deborah dançando (uma jovem Jennifer Connely). Os olhos velhos e embaçados espiam por um buraco na parede e imediatamente o passado — aquele que nunca é passado, como dizia William Faulkner — ressurge, para Noodles e para nós, espectadores já certos de que assistimos ali a cinema de gente com neurônios funcionais ). Se não me engano, a música da cena é Amapola. Mais: as cenas de “Era uma Vez no Oeste” em que há Man With a Harmonica ou o tema principal como músicas de fundo.

O que existe de comum nessas cenas, fora a direção de Sergio Leone e Giuseppe Tornatore? A fusão perfeita entre imagem e música; as sensações que elas nos causam (nunca menos do que arrepios); e, sobretudo, o compositor das trilhas sonoras, Ennio Morricone. Quando se fala de música de cinema, Morricone é o nome que nos vem à mente. Em décadas de trabalho, ele ainda nos deixou composições para, entre tantos outros filmes, A Missão, Os Intocáveis, Malèna, A Lenda do Pianista do Mar… E temos, claro, o tema principal de Três Homems em Conflito, que acabou se tornando a tradução quintessencial, por assim dizer, de “faroeste”, usado até em comerciais.

O italiano Ennio Morricone se foi hoje, aos 91 anos. Grazie, grazie tante, grazie mille. Arrivederci, Ennio.