Quem, ou que é, o juiz Holden, de Meridiano de Sangue

Num ensaio anterior sobre “Meridiano de Sangue”, afirmei que a gangue de Glanton foi uma invenção de Cormac McCarthy, escritor norte-americano. A informação está parcialmente equivocada: existiu um John Joel Glanton, colono e mercenário que chegou a ser reconhecido no congresso dos EUA por certos serviços prestados ao país, e que consistiam em perseguir e matar os nativos da região pioneira do Oeste. O fato só confirma a validade de uma leitura histórica do romance, que é baseado em fontes reais. Nisso guarda similaridades com “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que é também uma campanha expedicionária que termina em genocídio, patrocinado pelo governo da República. A diferença é de grau, uma vez que McCarthy é o campeão disparado da violência nua e crua.

Mais do que Glanton, chefe do bando que é central em Meridiano de Sangue, dois assassinos profissionais estão no epicentro da trama: o “rapaz” (ou simplesmente Kid, na edição brasileira) e juiz Holden, assim chamado por razões obscuras. O personagem que o inspirou também teria existido, conforme testemunho do militar e escritor Samuel Chamberlain, em sua autobiografia “My Confession: Recollections of a Rogue”, uma das possíveis fontes utilizadas por McCarthy. Embora integrem a mesma hoste, Kid e o juiz jamais foram amigos (é um livro sem amizades) e, do meio para frente, tornam-se inimigos mortais. De certo modo, o que temos é a história dessa perseguição, que começa já nas primeiras páginas, quando se encontram numa igreja na localidade de Nacogdoches, na República de Fredônia (antigo nome do atual estado do Texas). Não foi um encontro combinado, mas talvez não haja acaso, na visão fatalista de McCarthy. Para um romance ambientado nos Estados Unidos do século 19, a religião há de ter uma importância significativa. Provam-no “A Letra Escarlate” (1850), de Nathaniel Hawthorne, e “Moby Dick” (1851), de Herman Melville, dois dos maiores romances norte-americanos, contemporâneos da história de McCarthy.

A violência da chamada “civilização” contra a barbárie é autoevidente, e por suas características os polos poderiam facilmente ser invertidos em desfavor do homem branco. Mas é muito pouco provável que Cormac McCarthy esteja interessado em fazer revisionismo histórico. Sua narrativa admite tal problematização, mas transcende a si mesma, inviabilizando qualquer pretensão de resumi-la a uma disputa entre vencedores e vencidos. Simplesmente porque existe também a possibilidade, em “Meridiano de Sangue”, de só haver perdedores. O drama metafísico apequena as contingências históricas e expõe a perdição ou a condição do homem: as duas alternativas estão em jogo, e o livro é na verdade atemporal.

Realismo fantástico

A dissociação entre homem e natureza é uma invenção da cultura, sendo que esta traçou uma fronteira entre o humano e o animal, por meio dos símbolos. Cormac McCarthy violenta essa fronteira e lança-nos de volta às nossas origens mais atávicas, quando não reconhecíamos nossa humanidade. Vivíamos sujeitos aos próprios instintos, sob a hostilidade de um universo absolutamente estranho e maligno, nem sempre visível. O livro narra uma viagem, e as viagens costumam refletir o destino do homem. Nem sempre são reais, e sim alegóricas, como a de Riobaldo pelo sertão, de Dante pelo Inferno e a do capitão Ahab pelo oceano. Livro desta estirpe, “Meridiano de Sangue” é uma assombrosa reflexão sobre nossa deambulação neste plano maldito. Sob uma atmosfera de zombeteira pantomima, às vezes partilhada com procissões fantasmagóricas, os mercenários vagam como condenados pelo árido deserto da existência. Mas é preciso investigar quem são seus personagens, principalmente: quem, ou o quê é, o juiz Holden?

Meridiano de Sangue (1985), de Cormac McCarthy
Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy

De saída, não se trata de um magistrado de comarca interiorana, aplicando as leis humanas. Primeiro é um mercenário crudelíssimo, e depois revela-se outras coisas que nos perturbam. Além das excentricidades que o envolvem — ficar nu, não dormir, dançar, desenhar, dominar outros idiomas, fazer anotações numa caderneta, declamar, fazer sermões etc. — sua origem é tão antiga quanto… a do próprio Universo. Tudo isso transfigura o realismo da narrativa para possibilidades muito menos palpáveis. Lícito é, inclusive, falar-se de realismo fantástico, uma vez que o juiz de McCarthy pode ser tudo, menos uma “criatura” deste mundo. O caráter sobrenatural de “Meridiano de Sangue” é tão significativo quanto o histórico, porque sobrenatural é o juiz Holden. Pertence seguramente à família de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez. Basta citar o estranho ritual alquímico que o gigante albino preside em determinado momento do livro, a lembrar o cigano Melquíades, criado pelo escritor colombiano.

Aqui abre-se o caminho para duas outras explicações, aliás diametralmente opostas, para o multifacetado Holden: a religiosa e a materialista. Elementos para tais análises sobejam no livro e, supõem-se, não estariam ali por acaso.

Holden é a personificação do diabo?

Símbolos cristãos permeiam a tessitura de “Meridiano de Sangue” de fora a fora: água, igrejas, procissões, reflexões de cunho teológico, padres, Deus e o diabo. A matança desenfreada, que se sucede sem trégua, colocaria as questões metafísicas na sombra se não fossem tanto essa simbologia quanto o juiz. Sua existência tem a capacidade de transformar a narrativa num mistério a ser desvendado, constituindo-se aliás no principal deles. 

Em nenhum outro romance universal a violência define tão categoricamente o próprio homem. Sendo, portanto, ontológica, a maldade é irremediável e por causa dela estamos no inferno, que transborda as fronteiras da eternidade e abocanha nossa vida passageira, aqui na superfície. Em dado momento do romance as pontas parecem se juntar, reforçando de maneira poderosa o sentido transcendente de “Meridiano de Sangue”: a despeito de Glanton e seu bando de mercenários, já quase inteiramente extinto, temos de volta o juiz perseguindo Kid numa espécie de gólgota às avessas, situação que começa a delinear-se no capítulo I, naquele encontro que se segue à destruição de uma igreja pelas mentiras de Holden. Então seria ele o Pai da Mentira, que é também um “homicida”, como está escrito em João 8:44? A associação com o diabo é, além de um tanto quanto explícita, recorrente, como naquela aparição no deserto, que lembra o capítulo 4 de Mateus, versículos de 1 a 11. Depois de cavalgar uma noite inteira e parte de um dia, tendo atravessado “quinze ou vinte milhas”, o bando depara com o juiz no meio do nada, em cima de um penedo, “em pleno sertão, e completamente só”, sem cavalo para tê-lo transportado: “Uma pessoa não entendia de onde é que ele tinha vindo”. Na sequência é revelado pelo narrador que “Há entre eles um pacto secreto. Uma terrível aliança”, em referência ao juiz e a Glanton. Um escritor faria associações tão manjadas sem a intenção de levar-nos à conclusão e que Holden é a personificação do diabo?

O problema é que essa leitura só funciona até certo ponto: alguém pode alegar, com razão, que é uma visão anacrônica, já que para os contemporâneos a importância da religião não se equipara à que tinha há quase dois séculos. Nossa compreensão do mundo está-se tornando cada vez mais secularista, e é presumível que McCarthy escreva para nós, não para os americanos do século retrasado.

Embora pareça situar-se no século 19, o contexto do romance pode ser pós-cristão ou pós-religião. Atentemo-nos para aquelas igrejas em ruínas: uma cheia de excrementos, pombos, abutres e cadáveres, onde “uma Virgem de madeira esculpida segurava nos braços um menino decapitado”. Outra, depois, atacada por índios Comanche, igualmente cheia de cadáveres, onde “Um Cristo morto num ataúde de vidro jazia em estilhaços no chão do coro”. Por fim, aquela, igualmente em ruínas, em San José de Tumacacori, cuja sacristia é ultrajada por Glanton, montado a cavalo. Seriam alegorias do mal triunfante? Que os personagens da gangue falem de Deus é compreensível — falam a partir de um contexto religioso —, mas tantas igrejas destruídas devem ter um significado menos óbvio: não seriam igrejas reais, mas simbólicas. O autor salta do passado para o presente, onde Deus (Jesus) agoniza sob o declínio da fé. O esteio de nossa civilização ruiu. O mais importante sistema de crenças, de normas de conduta e moral universais entrou em decadência. As estatísticas estão aí para comprovar: o homem ocidental está ficando órfão de seu amparo mais seguro nos últimos 2 mil anos. Portanto, que o mal venceu depende da interpretação. Pois, sem a mitologia cristã, não fazem sentido nem o mal nem o diabo, cuja existência pressupõe seu reverso. Sob esse ponto de vista, Holden tem de ser outra coisa — mas o quê?

Uma visão niilista e aterradora da existência humana

Como bem observou o crítico norte-americano Harold Bloom (em “Como e Por Que Ler”) “Meridiano de Sangue” evoca “Moby Dick”. Sua aparência — um homem completamente sem pelos e todo branco — e certas alusões esparsas ao épico de Herman Melville servem para compor um símile bastante original do grande cachalote. Porém, o comportamento sanguinário de Holden coloca-o mais próximo do tubarão branco do que da baleia em fuga. É, sob esse ponto de vista, uma expressão do materialismo: a rigorosa concepção da vida como uma luta perpétua entre a vida e a morte, em que o homem é reduzido a um simples predador, destituído de qualquer freio moral. Raramente há, em todo o romance, indícios de empatia, nem sequer com os animais. Há quase que somente relações de selvageria, em que os instintos assassinos prevalecem sobre qualquer ordem reconhecida de valores e de civilização. Sob tais condições, é perfeitamente compreensível que o livro seja, do começo ao fim, violência acima de tudo. Difícil extrair de suas páginas a cena mais chocante, muito embora nem tudo seja crânios esfacelados e derramamento de sangue. Há uma em que o juiz Holden aparece perseguindo o “rapaz” no finalzinho da história; cena em que há apenas suspense. Ao contrário do cachalote Moby Dick, Holden nunca está em fuga, mas é a própria perseguição implacável, como vemos neste trecho, onde é novamente descrito: “Desceu a encosta do monte e pôs-e a cruzar a planura, com o idiota diante dele, preso a uma trela de couro. Trazia as duas espingardas que tinham pertencido a Brown e ainda um par de cantis cruzados sobre o peito e dois polvorinhos, um deles de chifre, mais a sacola e uma mochila de lona que também devia ter pertencido a Brown. Ainda mais estranho, trazia uma sombrinha feita de pedaços decrépitos de pele de animais esticados sobre uma armação de costelas amarradas com tiras de carne seca”.

Imagine-se perdido no meio do nada, perseguido por tal figura: é uma imagem de pesadelo. Leio este retrato e só consigo enxergar a morte no encalço do esquivo Kid. A história que se inicia com a infância do rapaz termina de maneira trágica numa latrina. Desde o primeiro capítulo a vida deste personagem transcorre à sombra da entidade que irá inexoravelmente extinguir-lhe a vida, com “um abraço”. Ele por sua vez não consegue eliminá-la, e escapar é impossível. O bem e o mal foram transcendidos tanto quanto a esperança, uma vez que não há, nesse deserto sombrio, nem mesmo o diabo: nada além da matéria, sujeita perpetuamente à destruição. Tal possibilidade explicaria a quase absoluta ausência de princípios, em “Meridiano de Sangue”: rege-o, apenas, o embate mortal entre as criaturas vivas, num processo sem descanso de extinção. Uma visão profundamente niilista e aterradora da existência humana.

Em “O Existencialismo é um Humanismo”, Jean-Paul Sartre sugere que a ausência de Deus nos confere uma enorme responsabilidade neste mundo (uma vez que o único ser capaz de nos conferir um significado possível é o próprio homem, com suas escolhas). Já em McCarthy não vislumbramos nenhum sinal de responsabilidade, nem sequer o menor vestígio. Não há heróis. Nenhum princípio ou freio moral obriga o indivíduo a tomar atitudes razoáveis, exatamente, talvez, porque está só. Tudo é entropia. Estamos sob o império pleno do juiz Holden, que já não é um símbolo, mas provavelmente uma nova alegoria. Afinal, a certa altura do livro aparece um idiota enjaulado, que logo depois é conduzido por Holden numa coleira, enquanto vaga no deserto atrás de Kid. É possível que, com essa imagem, McCarthy tenha buscado traduzir a condição do homem na natureza. Ou, por outra: a humanidade é aquele idiota preso à coleira, sem nenhuma chance de salvação.

A Morte imemorial — tão antiga quanto o Universo (um atributo do juiz) — reina soberana sobre todos os seres e, com um sorriso de única sobrevivente, dançará sobre nossos cadáveres, no fim.