Salvando o Bar Luiz

Salvando o Bar Luiz

Não costumo acreditar em figuras estereotipadas como “o goiano é assim” ou “o paulista é assado” — somos todos muito nuançados para sermos sempre “um povo cordial” e para que o sertanejo se mostre, mesmo no enterro da mainha ou diante de um prato de baião de dois com carne-seca, “antes de tudo, um forte”.

Mas há o carioca: gente que se junta para salvar um botequim mais do que centenário, o Bar Luiz, que agora manterá suas portas abertas. Faz parte de um roteiro que repito sempre no Rio, o Bar Luiz, muitas vezes aos sábados. Como naqueles anúncios antigos de jornais, “a família agradece penhoradamente”. Vamos a ele.

Ao meio-dia de sábado, abre a Adega do Pimenta, na Praça Tiradentes, onde servem uma currywurst com chope muitíssimo bem tirado. A Tiradentes faz parte do centro ainda não revitalizado, é confusa, mais ao estilo da 25 de Março de São Paulo. Confusa como o Brasil, eu diria.

Praça-síntese das contradições brasileiras. Campo da Cidade, Campo de São Domingos, Campo dos Ciganos, Campo de Lampadosa, Largo do Rossio Grande, Praça da Constituição, Praça Tiradentes. Há discussões sobre o local exato em que se situaria a forca em que Tiradentes foi morto, mas parece que seria na atual esquina da Avenida Passos com a Buenos Aires, nas redondezas. Preso numa casa na Rua Gonçalves Dias (então dos Ratoeiros), talvez onde está hoje a Confeitaria Colombo, ele ficou detido na Ilha das Cobras, passou a sua última noite na Cadeia (onde hoje fica o Palácio Tiradentes), viu a última missa na Igreja da Lampadosa (no quarteirão acima da Praça), foi enforcado na região e depois esquartejado na Casa do Trem (Museu Histórico Nacional). A praça ganhou o seu nome e tem no meio a estátua de Pedro I, o monarca descendente da rainha contra quem Tiradentes conjurou — eis a primeira contradição.

O histórico Bar Luiz,  fundado em 1887
O histórico Bar Luiz, fundado em 1887

A Praça viu: o juramento da Constituição portuguesa e da primeira brasileira, conchavos políticos (Ministério da Justiça e casa de José Bonifácio), o nascimento do teatro brasileiro, o teatro de revista, o apogeu do teatro rebolado, o auge das gafieiras, muita prostituição. Nela pontificaram José Bonifácio e Grande Otelo — eu disse que tudo na Tiradentes é contraditório.

O destino seguinte é a Praça XV e o Paço Imperial, alguns quarteirões adiante. Como será sábado, quase tudo estará fechado no caminho, como a Confeitaria Colombo e o mais belo interior de um edifício carioca, o Real Gabinete Português de Leitura, único prédio de estilo manuelino no Rio. De qualquer modo, o caminho é para mim território sagrado.

O caminho da Tiradentes ao Paço passa pela Rua da Carioca e da Assembleia, e ali é preciso atravessar ajoelhado a calçada em frente ao número 53, onde funcionou, entre 1963 e 65, o mítico Zicartola, com muito samba acompanhado dos pratos de Dona Zica. Foi no Zicartola que o bancário Paulo César Batista de Faria se transformou — aleluia! — em Paulinho da Viola.

Um pouco à frente está o nosso “morto mas passa bem” Bar Luiz, que existe desde 1887, um dos muitos bares alemães do Rio. Criado como Zum Schlauch, foi também Bar Adolph antes de ser Luiz. Por motivos óbvios, esses bares alemães mudaram de nome durante a Segunda Guerra. O Luiz, aliás, esteve a ponto de ser destruído por patriotíssimos estudantes revoltados com o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães, mas Ary Barroso, trepado numa mesa, dispersou a turba. Salvo do fechamento nesta semana, que siga nos dando alegrias, pois é lugar para mais uns obrigatórios chopes (não sei bem seu horário de funcionamento: já o vi fechado e aberto aos sábados).

Na Praça XV. A região foi habitada quando os portugueses, depois de vencerem os franceses, resolveram abandonar a “cidade velha”, entre o Pão de Açúcar e o Morro Cara de Cão, e se estabelecer no alto do Morro do Castelo, formando em seguida a cidade no quadrilátero entre os morros do Castelo e Santo Antônio, ao sul e hoje derrubados, e de São Bento e da Conceição, ao norte. A Rua Direita, atual Primeiro de Março, passando na lateral da Praça, ligava o Castelo ao São Bento.

A ótima Livraria Arlequim fica no Paço Imperial (ou ficava: parece que fechou há uns dois meses). Se não conhecem o Paço, visitem-no com vagar e meditem sobre aqueles estranhos tempos de barões e marqueses nos trópicos. Sempre faço nele uma prece aos dois Pedros, pois gosto de ambos; na verdade, imagino que deveriam ter sido uma única pessoa, os defeitos de D. Pedro I, que Paulo Mendes Campos acreditava essenciais ao caráter brasileiro (de novo: “o brasileiro”…), somando-se às qualidades de D. Pedro II, e talvez esta confusa República não tivesse nascido. Eu não disse antes? Pois digo agora: sou vagamente monarquista, apenas constrangido por uma preguiça difusa de tomar posição em todos os assuntos; os livros ainda não lidos e as viagens por fazer também me contaminam as disposições políticas.

É difícil não turistar na região. Além do Paço, temos o Palácio Tiradentes, as Igrejas e a própria Praça XV, com o Chafariz do Mestre Valentim. Isso no perímetro imediato, porque muito mais há nas adjacências.

Livraria Folha Seca, um templo dedicado ao Rio: muitos e muitos livros sobre sua história, personagens, música, futebol, vida noturna

É lugar de ocupação antiquíssima. A antiga Rua Direita seguia a linha da praia, chamada Piaçaba. Ali se construiu a Igreja da Ordem do Carmo. Por conta de aterros, formou-se em frente um largo, onde foi erguido um pelourinho (ou polé), ficando o local conhecido como Terreiro do Carmo ou da Polé. Depois construíram a Casa da Câmara e Cadeia e a Casa dos Governadores. A primeira, onde Tiradentes esteve preso, foi destruída para dar lugar ao Palácio Tiradentes, antiga sede da Câmara dos Deputados e atualmente Assembleia Legislativa; a segunda transformou-se no Paço Imperial com a chegada da família real portuguesa, que vinha fugida de Napoleão. É local de exposições temporárias, mas foi, tristemente, agência dos Correios durante boa parte do século passado — imaginem: o centro nevrálgico do poder imperial apagado da memória do país como forma de vingança.

Da Praça se vai à Rua do Ouvidor, o destino principal dos meus sábados, pela Travessa do Comércio, caminhando-se sob o Arco do Teles. Carmem Miranda, dizem, morou nessa Travessa. E tanta coisa aconteceu nesse espaço que meus brios de brasileiro descrente voltam a fulgir, salve, salve e ouvirundum. É a rua das rodinhas literárias em livrarias outrora famosas, Laemmert, Garnier, José Olympio. Hoje temos a Livraria Folha Seca, um templo dedicado ao Rio: muitos e muitos livros sobre sua história, personagens, música, futebol, vida noturna (e o pai da figura que comanda tudo isso, Rodrigo Ferrari, mora logo ali, na nossa goiana Pirenópolis). Sim, sou velho e revelho e me sinto um conselheiro de barbas e sobrecasaca imperiais, daí porque a minha vida centra-se, digamos, no “Museu de Ontem”, nunca no do “Amanhã” (aquela unha encravada na Praça Mauá…).

Chegada a hora de comer, são muitas as opções. O Rio Minho é o restaurante mais antigo do Rio, funcionando desde 1884. O cardápio, sem frescuras, não tem descrições minuciosas com nomes em francês; por exemplo, há “peixe com molho de camarões”. O carro-chefe é a sopa Leão Veloso, que o embaixador Paulo Leão Veloso criou adaptando a francesa bouilabaisse ao seu gosto. Pesquiso os feitos diplomáticos do embaixador no Google e nada encontro. Pouco importa: pela sopa, o homem merece o nosso penhorado e duradouro respeito. É local de linhagem nobre: o Barão do Rio Branco e o editor José Olympio foram dois dos muitos habitués.

Rio Minho
Rio Minho: o restaurante mais antigo do Rio, funcionando desde 1884

Infelizmente, é um pouco caro para o que hoje oferece (mas vale o preço caso se almoce com os olhos no passado). O Rio Minho tem ainda um boteco voltado para a Baía, o Cabaça do Minho. É do tipo bunda-de-fora, uma tradição carioca (botequim que, de tão pequeno, deixa a derrière do freguês, sentado ao balcão, de fora do estabelecimento). Um chope ali pode ser uma boa. Outras opções existem. Por exemplo, há samba e cerveja gelada no Antigamente aos sábados, bem ao lado da Folha Seca, e feijoada no Gengibre e no Belmonte, este último com a bênção de um ar-condicionado.

Terminado o almoço, na Visconde de Itaboraí e proximidades estão o Centro Cultural dos Correios, o do Banco do Brasil e a Casa França-Brasil. E os charutos devem ser degustados no antiquíssimo sobrado da Tabacaria do Ouvidor, também ao lado da Folha Seca. Por fim, logo depois desse corredor cultural, temos a Igreja da Candelária.

“Inesquecível, padres.”

Muitas das minhas leituras me vieram da infância e adolescência por influência dos meus pais. Uma delas foi o livro de Zuenir Ventura sobre 1968, “O Ano Que Não Terminou”, comprado por meu pai no seu lançamento em 1988. Meu pai, jamais um esquerdista mas sempre um humanista, lia repetidamente em voz alta a orelha do livro com a célebre passagem de Dickens (“Foi o melhor dos tempos e o pior dos tempos, a idade da sabedoria e da insensatez, a primavera da esperança e o inverno do desespero. Tínhamos tudo e nada tínhamos”). Aquilo me marcou; último da fila para ler o livro (primeiro meus pais, depois meus irmãos mais velhos), ataquei-o assim que tive a vez. E ficou-me nestes anos todos a frase de Otto Maria Carpeaux para os padres que defenderam os estudantes que assistiram a missa de sétimo dia do também estudante Edson Luís, morto no restaurante da UNE em 28 de março de 1968, o famoso Calabouço, por policiais militares. Na saída da missa, levada na Candelária, com a cavalaria e seus mais de cem cavalos à porta, os cavalos agitados com a balbúrdia, o gás lacrimogêneo e os policiais armados de sabre, os padres, vários deles de pensamento conservador, se deram as mãos e formaram duas correntes para que no meio caminhasse a estudantada, tentando assim dispersar todos sem repetir os confrontos que aconteceram na missa que fora celebrada pela manhã, também em memória de Edson Luís, o que conseguiram incialmente, mas depois muitos foram perseguidos e atacados nas ruas do Centro. Vendo a coragem dos padres quase sob as patas dos cavalos de meia tonelada, Carpeaux, austríaco que ajudou a nos desasnar com sua crítica literária, gaguejou um emocionado “Inesquecível, padres” em agradecimento, e essa frase reverberou naquele estudante que fui e que sonhava vagamente com atos heroicos. Pois tudo isso se deu, em 4 de abril de 1968, nessa Igreja de Nossa Senhora da Candelária, onde uma prece pelos nossos estudantes, ainda meio perdidos em 1968, cabe bem.

barluiz
Os donos anunciaram que o Bar Luiz fecharia, mas decidiram mantê-lo aberto

Muito mais existe na região, mas já basta para se compreender que sou um homem do Centro, não de Ipanema ou Copacabana. Não sei se o gosto por centros de cidades já é doença catalogada no CID; se não é, creio que a merecida honra, por assim dizer, está atrasada: sendo obsessão profunda, é por isso mesmo incapacitante — para outras atividades, bem entendido — e traz transtornos ao infeliz que dela padece. Pois o infeliz aqui, já viram, dela padece. E é mim doença arraigada, sofro-a desde novo, ou mesmo, eu até diria, de modo latente desde os cueiros. Acostumado assim com esses achaques, deles cuido como Nelson Rodrigues tratava sua úlcera, com sopinhas e desvelo. Como toda doença, há variações de sintomas e formas de ataque; sou, ai de mim, do tipo crônico, a aflição se desenvolvendo ao longo dos anos como prédio antigo, desses que vemos na região central (ora, ora) das cidades, se desfazendo aos poucos. Isso não impede, claro, crises agudas, como as que tive quando vi pela primeira vez o centro, ou o que chamam de centro, de algumas cidades que aprecio imensamente, como o Casco Viejo de Havana, a Staré Mesto de Praga, o Mitte de Berlim, coisas assim, e a euforia do momento me fez ver que minha coleção de obsessões crescera irremediavelmente. Há também formas difusas, digamos assim, desse mal de que sofremos nós, os padecentes sem remissão. Gosta-se de um lugar, por exemplo, sem que haja uma organização sentimental. Confesso, portanto: é justamente para organizar geograficamente antigos fragmentos de memória afetiva que frequento o centro da mui leal e heroica São Sebastião do Rio de Janeiro.

Enfim: salvou-se por ora o Bar Luiz. Obrigado, cariocas. O Rio, todos sabemos, tem uma história de amor com a chamada cultura de botequim, e nenhum turismo cultural ficaria completo sem os bares e botecos cantados em prosa, verso e pandeiro. O boteco é mesmo, já se disse, a ágora do carioca, apesar de ser um amor às vezes conflituoso, atualmente abalado pelas vitórias das hostes que se dizem politicamente corretas e que me fazem lembrar que uma autoridade qualquer, já em 1808, queria “que as vendas, botequins e casas de jogos não estejam toda a noite abertos para se evitarem ajuntamentos de ociosos, mesmo de escravos que, faltando ao serviço de seus senhores se corrompem uns aos outros”, como atestam Paulo Thiago de Mello e Zé Octávio Sebadelhe no indispensável “Memória Afetiva do Botequim Carioca”. Como participar de ajuntamentos de ociosos é uma das minhas missões na vida, sempre me abanco nesses botecos. De novo: obrigado, minha gente carioca.