Varlam Chalámov: foi o meu próprio sangue que cimentou as frases de Contos de Kolimá

Nos campos de trabalhos forçados, Chalámov quase morreu de fome. Mas resistiu. E, tendo resistido, impôs-se uma missão: contar o que viu e viveu

Contos de Kolimá” (Editora 34, 303 páginas, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich), do poeta e prosador Varlam Chalámov (1907-1982), é uma obra-prima da literatura russa. São relatos literários, nos quais a história subordina-se à vida cotidiana — os homens, mais do que heróis, são vítimas do sistema comunista —, muito bem escritos. Não há melodrama algum, às vezes há aquela secura típica de Graciliano Ramos. No geral, dadas a vivacidade da narrativa e a apresentação dos fatos como coisas vivas, a secura cede à riqueza e ao ritmo da vida. Não há espaço para romantismo.

Chalámov não conta a partir daquilo que outro viu. Relata o que viu, o que aconteceu nos campos nos quais esteve como prisioneiro-pária. Suas histórias são vívidas e dolorosas. Historiadores, como Anne Applebaum, usam-nas como documentos históricos. “É necessário e possível escrever um conto que seja indistinguível de um documento”, escreveu o autor de “Contos de Kolimá”. A intensidade da dor parece retirar a vitalidade da literatura. Só parece. Porque a força da literatura do autor é tal que a dor pode ser percebida de maneira mais intensa.

Nos campos de trabalhos forçados, Chalámov quase morreu de fome. Mas resistiu. E, tendo resistido, impôs-se uma missão: contar o que viu e viveu. Não há o didatismo dos autores de certos romances históricos e a preocupação documental do historiador acadêmico. A literatura, com sua elasticidade para capturar o cotidiano, é, por assim dizer, o instrumento perfeito para Chalámov registrar a barbárie dos campos de Stálin — tão terríveis, embora menos comentados, quanto os campos de concentração e extermínio do nazismo de Adolf Hitler. O leitor percebe homens de carne e ossos, vivendo em condições subumanas, e, ao mergulhar nos contos, dialoga e sofre com eles.

Acusado de distribuir cópias de um texto no qual Lênin criticara Stálin, portanto era um “elemento socialmente perigoso”, Chalámov foi preso pela primeira vez em 1929. A base era o artigo 58 do Código Penal, que tipificava ações “contrarrevolucionárias” como grave crime político. Em 1937, quando Stálin comandou uma repressão feroz aos “inimigos” — inclusive comunistas que participaram da Revolução Russa de 1917 —, o escritor foi condenado pela segunda vez e enviado para Kolimá, na Sibéria. Lá viveu, em condições aterradoras, mais (de) 17 anos. Mesmo quando doente, era forçado a trabalhar. Uma vez, o supervisor, tendo Chalámov avisado que estava doente, sem energia para trabalhar, só mandou um enfermeiro atendê-lo três dias depois. Antes, o supervisor o havia chamado de “canalha”.

Varlám Chalámov após detenção em 1937

Ao deixar Kolimá, em novembro de 1953, Chalámov pôs-se a escrever os “Contos de Kolimá”. Demorou 20 anos para conclui-los. A Rússia publicou os primeiros livros com os contos apenas em 1989. O autor já estava morto.

Há quem acredite que, em circunstâncias difíceis, os laços de amizade são possíveis e até reforçados. Na Sibéria, sobreviver era mais importante do que fazer amigos. No conto “Medição individual”, Chalámov escreve: “Dugaiév ficou surpreso, ele e Baránov não eram amigos. Aliás, com fome, frio e sono, não se fazia amizade nenhuma, e Dugáiev, apesar de jovem, compreendia toda a falsidade do provérbio sobre amigos temperados na infelicidade e na desgraça. Para que a amizade fosse amizade era preciso uma base sólida, formada quando as condições e a vida ainda não tivessem atingido aquela última fronteira, além da qual já não há nada de humano no ser humano, a não ser desconfiança, maldade e mentira. Dugáiev lembra bem o provérbio nortista dos três mandamentos do detento: não confie, não tema e não peça”.

No conto “Ração seca”, um dos mais longos, Chalámov volta ao tema: “A amizade não nasce nem na carência nem na desgraça. As condições de vida ‘difíceis’ que, segundo nos dizem os contos da literatura de ficção, são indispensáveis para o surgimento da amizade, na verdade não são assim tão difíceis. Se a desgraça e a carência reunidas geram amizade entre as pessoas, então isso significa que a carência não é extrema e a desgraça não é grande. A tristeza que se pode dividir com amigos não é tão aguda nem profunda. Na verdadeira carência, só se reconhece a fortaleza do próprio espírito e do próprio corpo, determinam-se os limites das próprias possibilidades, da resistência física e da força moral. Todos nós entendíamos que só era possível sobreviver por acaso. (…) Sabíamos que ali [no campo de prisioneiros] não era lugar para fazer amizades”.

Com o que os prisioneiros, intelectuais ou não, sonhavam na Sibéria — sob um frio às vezes de até 60 graus negativos? “Todos nós sonhávamos com a mesma coisa: fatias de pão de centeio que flutuavam à nossa frente como bólides ou anjos”, anota Chalámov. O conto relata, ao final, o suicídio de Ivan Ivánovitch, que “enforcou-se na forquilha de uma árvore”.

No conto “Chuva”, Chalámov relata as terríveis condições de vida nos campos de trabalhos forçados na Sibéria. Milhares de pessoas morriam devido aos maus-tratos e a escassez de alimentos, mas os seres humanos eram mais resistentes do que os cavalos. “Faleciam [os cavalos] por causa do Norte, do trabalho além das forças, da comida ruim, das surras, e, embora tudo isso fosse dado a eles mil vezes menos do que às pessoas, faleciam antes. Então compreendi o principal: o ser humano tornou-se ser humano não porque é uma criatura de Deus e não porque tem um polegar em cada mão, mas sim porque é fisicamente mais forte, mais resistente do que todos os animais e, depois, porque conseguiu colocar seu princípio espiritual a serviço de seu princípio físico”.

No mesmo conto, Chalámov conta que uma vez, quando estavam extenuados, uma mulher “acenou com a mão, apontou para o céu, para um ponto no canto do firmamento e gritou: ‘Está próximo, rapazes, está próximo!’” Todos ficaram animados. A jovem “indicou que o sol imperceptível se punha no ocidente, que estava próximo o fim do dia de trabalho”. Uma “aparição” que pode ser qualificada de epifania.

No conto “A primeira morte”, a mulher descrita em “Chuva” reaparece; agora, com seu nome indicado, Anna Pávlovna. “Nossa brigada amava Anna Pávlovna. Agora ela jazia diante de nós, morta, asfixiada pelas mãos do homem de uniforme militar. (…) Era Chtemenko, agente de polícia da nossa lavra.”

Os prisioneiros agarraram Chtemenko, um homem cruel, o amarraram e o levaram à casa do chefe da lavra. “Logo condenaram Chtemenko a dez anos pelo assassinato por ciúme.”

Trecho do conto Ração Seca

Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov (Editora 34, 303 páginas, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich)

Estávamos todos cansados da comida do pavilhão, ficávamos sempre à beira do choro quando chegava a sopa, em caixas de descarga de zinco sustentadas por varas. Ficávamos à beira do choro com medo de que a sopa fosse rala. E, quando acontecia um milagre e a sopa era grossa, nem acreditávamos; contentes, tomávamos tudo bem devagarinho. Mas mesmo depois da sopa grossa, sentíamos um ardor intenso no estômago mais aquecido: muito tempo sem comer. Todos os sentimentos humanos, amor, amizade, inveja, generosidade, misericórdia, sede de glória, honestidade, desapareciam junto com a carne que perdíamos ao longo do jejum prolongado. Na camada muscular insignificante que ainda restava sobre nossos ossos, que ainda nos dava a possibilidade de comer, de nos mover, respirar, cortar lenha, pegar a pá e jogar pedras e areia no carrinho de mão e inclusive de empurrar o carrinho pela interminável trilha de madeira até a galeria da mina de ouro e pela estreita estrada de madeira até o equipamento de lavagem, nessa camada muscular acomodava-se apenas raiva, o sentimento humano mais duradouro (…)

Quer saber? — disse Savielev. — Vamos sonhar. Sobrevivemos, voltamos para o continente, envelhecemos rapidamente e viramos uns velhos doentes: ora as pontadas no coração, ora as dores do reumatismo não dão descanso, ora o peito começa a doer; tudo o que estamos fazendo agora, o modo como vivemos os anos da juventude, as noites sem dormir, o trabalho pesado muitas horas seguidas, as galerias de minas de ouro infiltradas de água gelada, o frio do inverno, os açoites dos guardas da escolta, tudo isso não vai passar sem deixar suas marcas, isso se continuarmos vivos. Vamos adoecer sem saber o motivo da doença, vamos gemer e viver em enfermarias. O trabalho acima das forças deixará em nós feridas incuráveis, e toda nossa vida e velhice será uma vida de dor, de interminável e variável dor física e espiritual. Mas, em meio a esses terríveis dias futuros, haverá também dias em que vamos respirar mais livremente, em que vamos nos sentir quase saudáveis e em que os nossos sofrimentos não vão nos inquietar. Esses dias não serão muitos. Eles serão tantos quantos forem os dias que conseguimos malandrar no campo de prisioneiros.