A Morte de Ivan Ilitch: um tratado sobre a vida e o destino irreversível de cada um de nós

A Morte de Ivan Ilitch: um tratado sobre a vida e o destino irreversível de cada um de nós

Ivan Ilitch, 45 anos, é um importante juíz de São Petersburgo, capital do Império Russo. Certa manhã (4 de fevereiro de 1882) os amigos de profissão e twist deparam com a notícia do seu falecimento. Seguem-se as reações: publicamente, a protocolar comoção; no íntimo de cada um o interesse pelo cargo vacante e suas prebendas. Ainda no velório!, a esposa do falecido inicia gestão para “obter dinheiro do Tesouro pela morte do marido”. Depois Tolstói esmiúça a vida pública e conjugal de Ivan, de onde extraímos a impressão geral do quadro: o foco de todos, incluindo nosso protagonista, são as intrigas em torno de posições, cargos e salários, que os bens conquistados representam para dar a medida de sua importância social.

O último dado é da maior relevância para a trama, e não é nunca por acaso que, além da magistratura, Tolstói dota Ivan de um talento especial para a decoração. A ponto de o narrador registrar, a certa altura, que “Tudo isso o absorvia tanto que seu novo emprego perdia o interesse…”, referindo-se à mobília doméstica. É uma frase banal e fundamental, e não poderia jamais passar despercebida. Tolstói nos ensina que ficção não se faz apenas de frases brilhantes: um lugar comum estrategicamente colocado no texto pode esconder um segredo, ou até mesmo o sentido, de uma trama inteira. Porque a frase em questão dimensiona até que ponto determinado conteúdo absorve Ivan. Trata-se de um frívolo, que nas horas vagas emprega suas energias à tarefa de emprestar à casa onde mora “um ar pronunciadamente aristocrático.” Segue um insight maravilhoso sobre a frivolidade: “Na verdade, havia ali o mesmo que se encontra nas casas de gente remediada, mas que pretende aparenta opulência e apenas consegue que pareçam extraordinariamente umas com as outras: tapeçarias, ébano, plantas, pesados bronzes, cores escuras ou vivas, enfim, tudo aquilo que as pessoas de certa classe possuem para parecer com as pessoas da mesma classe”.

Imbuída de grande literariedade, portanto mais elaborada, esta não é uma frase mais significativa do que a primeira, absolutamente despretensiosa. Mas revela o conteúdo daquela “absorção” de sentido. Visa, como tal, nos certificar que o indivíduo Ivan replica certo status e compraz-se em fazê-lo: em sua frivolidade é apenas um “imitador”, sem nenhum traço original.

Numa dessas, preocupado com a decoração (com as aparências, é o que se quer dizer!) Ivan sobe numa escada para arrumar uma cortina, escorrega e bate de lado na moldura de uma janela. A partir de tal incidente a vida do herói nunca mais será a mesma. Surge um sintoma, que evoluiu gradativamente, matando-o ao cabo de três meses e alguns dias de intenso sofrimento. É um triunfo da ironia.

A Morte de Ivan Ilitch
A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói

A doença, que sendo física acaba por expor a enfermidade moral, o obriga a reavaliar-se desde a infância até o calvário, via crucis onde apenas um homem, o mujique Guerássim, destoa do comportamento comum e atenua sua desgraça. Sendo verdadeiramente útil, o servo humildade parece cumprir uma missão muito mais nobre do que a sua. “A Morte de Ivan Ilitch” é, neste sentido, uma novela existencialista, posto que a consciência emerge e conduz Ivan à autorreflexão, em busca de um sentido verdadeiro para a vida e a morte.

Talvez devêssemos esperar que Tolstói não entregasse os pontos ao fechar as cortinas, quando a vida surpreendentemente continua. Afinal, Ivan: “Não tinha mais medo da morte, porque também a morte desaparecera de sua frente. Em lugar dela, via luz. ‘Então é isto!’, exclamou de repente em voz alta. ‘Que alegria!’”. A alegria é um dom de Deus e Tolstói reafirma a esperança na ressurreição, haja vista que, na cena derradeira, Ivan permanece consciente e relata-nos a promessa fantástica do Cristianismo.

Tal conclusão conecta-nos com uma afirmação de Harold Bloom em “Tolstoi e o heroísmo”, segundo a qual o escritor russo era incapaz de tolerar o niilismo: “Apesar de imensamente corajoso, Tolstói era movido não tanto por um medo vulgar de morrer ou da morte quanto por sua própria vitalidade e vitalismo, que não podiam aceitar nenhum sentido de deixar de existir”.

A literatura é a mais injusta das artes, porque é a única que, para uma parcela significativa de leitores, é acessível somente por tradução. E a tradução de “A Morte de Ivan Ilitch” sugere que Lev Tolstói era ferozmente sarcástico. A insistência em chamar de “especialistas” os médicos que assistiram ao nosso paciente moribundo é quase um deboche, a ouvidos atentos.

Espírito religioso, Tolstói lança uma severa invectiva ao conhecimento científico, tão apreciado e louvado pela cultura oitocentista, em particular na Europa ocidental. O crítico literário George Steiner depreendeu desse fato o caráter materialista do romance europeu em contraste com a originalidade metafísica dos russos (ver “Tolstói ou Dostoiévski”). O orgulho vão dos médicos (cientistas) contrasta com a absoluta incompetência do seu saber para curar um paciente desesperado. A “importância” com que um deles “dava a entender: basta que se submeta a nós e tudo resolvermos”, não resiste a um dado concreto bastante revelador: a divergência dos “especialistas” quanto ao diagnóstico. A tal ponto persiste a incerteza científica que, à revelia dos médicos, Ivan perde qualquer dúvida quanto ao seu estado: sabe que vai morrer.

Mas este é apenas um dos aspectos da brilhante novela publicada em 1886, na Rússia. Outro aspecto mais relevante é a vaidade, não do conhecimento, mas agora dos indivíduos. Voltamos ao caso de Ivan Ilitch.

Pode soar escandaloso aventar inverossimilhança num autor tão grande quanto Tolstói, mas é o que parece, e seria inútil ocultá-lo por causa da merecida reverência que lhe devemos. Embora plenamente maduro e tendo já escrito suas obras capitais — “Ana Karenina” e “Guerra e Paz” — Tolstói deixa subentendido, para fins de julgamento moral, que a causa da doença de Ivan foi aquele asbarrão, a partir do qual surge o sintoma. No entanto, deduz-se dos demais sintomas, claramente explicitados, que o mal que aniquila Ivan é provavelmente um câncer.

Seja como for, o autor quis associar a desgraça do seu personagem à futilidade de sua existência, motivo pela qual a origem da afecção relaciona-se ao hobbie do juíz. Foi a maneira que Tolstói encontrou de simbolizar quão mesquinhas são nossas vaidades, tantas vezes mais importantes aos nossos olhos do que as amizades e os amores que conquistamos. Ivan só se dá conta disso quando está prestes a cair dentro do “saco negro” da morte: todo o luxo que aprecia ostentar, a fim de nivelar-se ao seu meio social, não passa de embuste. Por extensão, toda a sociedade, baseada na aparência, só pode ser falsa.

Autores de estilo deixam marcas indeléveis em seus textos. Neste sentido, a visão moral dos últimos capítulos de “A morte de Ivan Ilitch” caberiam perfeitamente em “Ressurreição”, para o qual abre caminho (o romance, último de Tolstói, será lançado três anos depois). É uma visão que transcende cada história particular, incluindo “Ana Karenina”. É flagrantemente a visão do autor, que se serve, em sequência, de Konstantin Liévin, do próprio Ivan e depois de Dmitri Nekhludov, centros dramáticos de livros distintos, para conduzir seu pensamento, altamente filosófico. São, em cada caso, as máscaras de Tolstói, cujas convicções pairam como nuvens especulativas acima de suas histórias.

O escritor tem uma clara concepção moral tanto do homem quanto da história, e firme disposição para defendê-la. De acordo com esta concepção, a vida em sociedade é maquinalmente convencional e vazia. Nela Ivan se integra (à guisa de Nekhludov) até ser surpreendido por uma doença grave que restitui-lhe a consciência (no caso de Nekludhov, em “Ressurreição”, o móvel que estimula o exame de consciência é a culpa), e consciência do que realmente importa: a autenticidade do “eu”. Tudo, em ambos os livros, ambiciona o autoconhecimento.

Por mais realista que seja a morte de Ivan (trata-se de uma morte física), não há dúvida de que extingue-se primeiro o falso Ivan, para daí nascer o novo homem. É pena que, em geral, o “eu” de cada um de nós se manifeste só na hora da morte, quando é tarde para uma existência genuína. Ao menos neste plano, e não sabemos realmente se haverá outro para nos corrigir.