Morreu Philip Roth

O que dizer de um escritor que admiro profundamente? Li praticamente todos os seus livros, vários deles excepcionais, e já escrevi antes sobre o impacto que “O Teatro de Sabbath” teve em mim. O livro é, como todo grande romance, cheio de camadas que se sobrepõem. A vida de Morris Sabbath é um longo acúmulo de fracassos. Ele teve uma primeira esposa que desapareceu (muitos suspeitam que ele a teria assassinado), e a segunda é alcoólatra (enche a cara por dois motivos, segundo Roth: “por tudo aquilo que não havia acontecido e por tudo aquilo que havia acontecido”. É justo, digo eu). A amante morre de câncer pouco tempo depois do diagnóstico da doença. E ele ficou artrítico, o que, para um titereiro (sua estranha profissão), é uma condenação. Caiu também em desgraça ao ser gravado fazendo sexo por telefone, como dizemos atualmente, com uma jovem, digamos, bastante jovem — mas não chegou a ficar com ela “nudus cum nuda iacebat” ou “in eodem lecto”, como ensinavam comicamente os meus velhos professores de Direito Penal quando explicavam o crime de adultério (a propósito de nada: sinto-me um dinossauro quando escrevo essas coisas). Roth, que não foge à luta, coloca toda a conversa entre Sabbath e a jovem em notas de rodapé ao longo de 23 páginas. Depois, socorrido por um amigo que o hospeda, ele afronta seu anfitrião de todas as maneiras possíveis e é expulso de sua casa. Por fim, no inverno de sua desesperança, Sabbath pensa constantemente em suicídio. Eis o resumo do livro de 507 páginas — a moldura, por assim dizer, do que nos é apresentado nas profundezas da escrita de Roth.

Leio-o, entre outras coisas, como uma reflexão sobre a vida e a morte, e por isso o texto é profundamente humano, demasiado humano. Sabbath, aliás, é um estudioso da morte, leitor inveterado de livros sobre o tema, e a epígrafe do livro, que vem de “A Tempestade”, de Shakespeare, recorda-nos nosso fim comum (“Próspero: a cada três pensamentos, um será dedicado ao meu túmulo”). Percebemos que a vida é uma sequência de ruínas para Sabbath e para todos nós, um caminho certo para o pó que voltaremos a ser. Sabbath é um fracassado no amor, um fracassado profissionalmente (depois de algum sucesso) e ainda um fracassado moral. Mas, ao fim e ao cabo, todos somos fracassados. E, como grande parte da literatura de primeiro time, o livro pode ser lido também como um berro estridente de “ubi sunt?” (a saudade do irmão e da mãe perpassa algumas páginas pungentes). Só que Sabbath se diverte mais do que nós na busca do que acredita ser a vida real: libertário, farsante, sátiro, anti-herói, “admirador da incoerência humana”, demolidor de tabus, Dom Quixote que luta contra os moinhos da hipocrisia da repressão de comportamentos, manipulador (é um mestre da palavra), clínico-geral das safadezas próprias e dos semelhantes, profeta da anarquia, “evangelista da fornicação” sem qualquer ideologia política (“nada fez a favor de Israel” é o fecho do obituário que imagina para si mesmo), ele não se detém diante de nenhuma convenção. Alexander Portnoy, protagonista de outro grande romance de Roth, “O Complexo de Portnoy”, é fichinha para o desbragamento desse pregador das virtudes da fornicação que, mesmo sendo titereiro, não consegue controlar, contudo, as marionetes internas dos sentimentos e emoções (ou Sabbath seria Portnoy envelhecido?). Porém, se tudo caminha para a ruína, a pulsão vital (é assim mesmo, ó discípulos do austríaco maluco e onipresente?) ganha: o último parágrafo do livro é um credo de amor à vida (sim, amor) que constantemente repito para mim mesmo — “Não podia morrer porra nenhuma. Como é que ia deixar tudo isso para trás? Como é que podia ir embora? Tudo o que ele odiava estava aqui.” Imagino o Marquês de Sade olhando por cima dos ombros de Roth, inflado de orgulho, enquanto ele leva a sua filosofia da alcova ao extremo, e Rabelais aplaudindo os dois.

E Roth é, evidentemente, um narrador estupendo: escreve sempre com mestria ímpar. Publicou, repito, outros livros notáveis que talvez também me acompanhem à famosa ilha deserta, mas “O Teatro de Sabbath” é, para mim, sua obra-prima. Há várias passagens memoráveis. A partir da página 103 de uma edição recente da Companhia das Letras, ele descreve o ódio entre Sabbath e sua esposa, ódio que somente casais que estão juntos há muito tempo conseguem sentir. É perturbador. Depois, hospedado na casa de um amigo, ele ataca a esposa dele, equipada com todos os extras que o agradam, e mais tarde se diverte com a roupa de baixo da filha do casal, numa sequência de páginas que nos deixa tontos com sua loucura que segue num crescendo sem barreiras. Suas reflexões sobre a morte durante a visita a um cemitério são também magníficas (seu epitáfio será “Morris Sabbath. Mickey. Amado cliente de puteiros, sedutor, sodomita, corruptor de mulheres, destruidor de virtudes, perversor de jovens, uxoricida, suicida. 1929-1994”). E sim, sempre o sexo, em passagens muitas vezes mais engraçadas do que propriamente eróticas (pérola de Sabbath: “o maquinário do êxtase das mulheres teria deixado Tomás de Aquino desnorteado, caso os sentidos do santo tivessem experimentado a sua economia”).

Para os politicamente corretos, o livro, com muito sexo e comentários sexistas, integra uma lista negra. Uma tal Carmen Callil (a famosa quem?), editora de uma revista chamada “Virago” (!), foi a bête-noire de Roth, a quem não considera como escritor, durante algum tempo. Imagino que ela talvez se ressinta muito mais do heterossexualismo convicto dos personagens de Roth, como Alexander Portnoy, Sabbath, David Kepesh e Nathan Zuckerman, que dos excessos sexuais e da linguagem sem peias de manual de anatomia descritiva. Callil com certeza foi à loucura ao ler a parte em que Sabbath se apresenta na clínica onde sua esposa alcoólatra tenta se salvar e, com discursos para todos os que cruzam seu caminho, vai confirmando, conscientemente, ser um “opressor fálico”. Ela não compreende, eu diria, que o virtuose da palavra Roth faz com que o livro, mais que repulsivo, seja engraçado e, vá lá, um tanto magnético (sim, há grande literatura com humor, que o digam Swift e Sterne). E Philip Roth é, com certeza, um dos escritores que com mais lucidez escrutinou os escaninhos da alma humana, o que é confirmado pelos recentes livros que escreveu sobre a velhice (às vezes não tão lúcido, pois resolveu certa vez fazer críticas de jardim-de-infância a respeito de George W. Bush). Alguém já disse que Roth é o grande notário das obsessões próprias e alheias. Com efeito: as vilezas de Sabbath encontram eco no pântano interior de nós leitores, mas, na oposição disciplina-liberdade, Sabbath fica com a liberdade para que nós possamos, tristemente, ficar com a disciplina.

É literatura de altíssimo nível, é o salto triplo carpado de Roth, é talvez o grande romance dos anos 90, mas é também a súmula de nossa hediondez e a epopeia de nossas depravações. Com certeza, é leitura obrigatória — um daqueles livros que, uma vez terminada a última página, começa imediatamente a nostalgia da leitura. E, mais do que estar entre os meus preferidos, é também um dos poucos que eu gostaria de ter escrito, rindo comigo mesmo ao pensar na artilharia pesada que receberia por publicar esse dedo inquisidor apontado para a hipocrisia perene de todos nós.