“Inseparáveis“ parte de um ponto que o cinema costuma tratar com familiaridade, mas que aqui ganha um deslocamento interessante: a convivência forçada entre dois homens cuja aproximação só seria possível quando a vida de um deles perde o eixo. Felipe, interpretado por Oscar Martínez, vive o cotidiano de um empresário que, após o acidente que o torna tetraplégico, se vê cercado por profissionais preparados, porém incapazes de romper a barreira protocolar que o isola. Essa rotina se altera quando Tito, vivido por Rodrigo de la Serna, aceita o cargo de cuidador mais por necessidade econômica do que por vocação. A escolha desloca a lógica das relações dentro da casa, abrindo espaço para uma convivência que, aos poucos, se torna menos utilitária e mais transformadora.
A dinâmica entre os dois se constrói sobre fricções reais. Tito não possui qualquer formação na área, o que causa estranhamento imediato em Ivonne, interpretada por Alejandra Flechner, e em Verónica, vivida por Carla Peterson. A ausência de técnica, porém, acaba funcionando como antídoto para a condescendência que Felipe detecta nos demais candidatos. O que se forma ali não depende de discursos motivacionais, mas de pequenas atitudes que recuperam algo que o protagonista havia perdido: autonomia emocional. A escolha de levar Felipe em seu carro esportivo, por exemplo, desafia normas básicas de cuidado, mas devolve ao empresário uma sensação de pertencimento ao mundo que escapava de sua rotina higienizada.
Os deslocamentos pela cidade reforçam essa mudança. Quando Tito sai com Felipe pelas ruas de Buenos Aires ao perceber seu desconforto físico, o gesto funciona como demonstração de que a relação ultrapassa a simples prestação de serviços. Os passeios, os comentários feitos durante concertos e visitas a exposições e as interferências no conflito entre Elisa, interpretada por Rita Pauls, e Bautista, vivido por Franco Masini, ampliam a presença de Tito dentro da família, incorporando-o a uma esfera que ele próprio não imaginava ocupar. O vínculo que se forma não nasce de afinidades intelectuais, mas de uma espécie de pragmatismo afetivo que reorganiza o cotidiano de ambos.
Marcos Carnevale opta por dialogar abertamente com o filme francês que inspira a história, mas evita a imitação literal. A adaptação argentina retém a estrutura central, porém a desloca para um ambiente em que contrastes sociais, códigos de convivência e ritmos urbanos são distintos. Essa mudança, ainda que previsível, ganha certa força justamente porque o filme não tenta disfarçar a familiaridade do enredo. Ao invés de replicar o tom europeu do original, o diretor investe em uma atmosfera mais expansiva, marcada por gestos impulsivos de Tito e pela rigidez emocional de Felipe. A colisão desses temperamentos sustenta a narrativa e impede que ela se torne apenas um exercício de comparação com o modelo francês.
Rodrigo de la Serna acentua a irreverência de Tito a ponto de, em alguns momentos, desestabilizar o equilíbrio dramático. Essa intensidade, embora por vezes excessiva, funciona como contraponto à contenção de Oscar Martínez, que sustenta o personagem com uma sobriedade silenciosa. Os demais personagens orbitam essa relação central, contribuindo para a percepção de que a transformação de Felipe não se resume aos atos de rebeldia de Tito, mas à reconfiguração do ambiente doméstico como um todo. A música clássica que permeia algumas sequências reforça a dimensão contemplativa da narrativa, criando um contraste evidente com a energia intempestiva do cuidador.
O filme não busca superar seu antecessor francês, e talvez seja justamente essa renúncia que o torna mais honesto. Ao evidenciar que diferentes sociedades podem reconhecer nessa história um ponto comum, a adaptação sugere que a fragilidade humana não se restringe a identidades culturais específicas. O que se delineia em “Inseparáveis“ é menos uma tentativa de renovar um enredo conhecido e mais a observação de como relações improváveis podem devolver a alguém o sentido prático da existência. A narrativa encerra essa jornada sem recorrer a sentimentalismos artificiais, preferindo destacar o modo como ambos aprendem a lidar com limites, escolhas e impulsos que redefinem aquilo que cada um entende por vida possível.
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