Há filmes que operam como mecanismos de precisão narrativa. Mas há outros, mais raros, que preferem funcionar como armadilhas: te atraem pela promessa de clareza, para em seguida embaralhar tudo com maestria. “Um Contratempo”, do diretor espanhol Oriol Paulo, pertence a essa segunda linhagem, e se destaca por como confunde não por falha, mas por método. O longa, estruturado como uma partida de xadrez onde cada movimento revela intenções ocultas, não oferece ao espectador o conforto de uma única verdade. Pelo contrário: força-o a navegar por versões conflitantes de um mesmo evento, como se o próprio conceito de realidade estivesse sendo constantemente redesenhado. A trama gira em torno de Adrián Doria, empresário de prestígio acusado de assassinar sua amante. Ao lado da enigmática advogada Virginia Goodman, ele revisita, passo a passo, as circunstâncias do crime — em uma sessão noturna que mais parece um duelo moral do que uma preparação jurídica.
Mas o que distingue esse filme não é apenas sua engenhosa construção narrativa, e sim a maneira como ele estabelece uma relação quase física com o espectador. Não se trata de acompanhar uma história: trata-se de ser testado por ela. Cada silêncio entre os diálogos, cada mudança súbita na trilha sonora composta por Fernando Velázquez, cada plano meticulosamente escolhido pelo diretor de fotografia Xavi Giménez, tudo converge para um único objetivo: tensionar o olhar de quem assiste. O ritmo não é apenas acelerado; é hipnótico. Cada nova revelação, longe de oferecer estabilidade, instaura um novo abismo de dúvida. E quando o espectador acredita que finalmente dominou a lógica da narrativa, ela implode sob seus pés, revelando mais uma camada, mais uma contradição. Assistir a “Um Contratempo” não é um exercício passivo. É preciso ler cada legenda com atenção obsessiva, pausar cenas, discutir hipóteses em voz alta, como um detetive que não confia nem em sua própria intuição.
Essa sofisticação formal, no entanto, não seria suficiente se não estivesse sustentada por atuações que entendem o jogo em que estão inseridas. Ana Wagener entrega uma performance que oscila entre o domínio e a dúvida, manipulando o tempo e a linguagem com a precisão de quem está sempre dois passos à frente. Mario Casas, por sua vez, encarna um protagonista que nunca se estabiliza moralmente, culpado ou vítima, seu olhar trai mais do que suas palavras confessam. E é justamente essa ambiguidade que transforma o longa em algo maior do que um thriller convencional. Não se trata de buscar justiça, mas de compreender como ela pode ser encenada. Oriol Paulo, já conhecido por títulos como “O Corpo” e pelo roteiro de “Os Olhos de Júlia”, comprova aqui sua habilidade em criar labirintos onde cada esquina revela não um fim, mas outro início. Ao fim da projeção, não resta apenas a sensação de surpresa, resta a suspeita inquietante de que a verdade, no fundo, sempre foi uma questão de ponto de vista. E é essa consciência que torna “Um Contratempo” não apenas inesquecível, mas indispensável.
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