Há filmes que se contentam em contar uma história. “Harriet”, dirigido por Kasi Lemmons, quer mais: ele quer ser a lembrança que nunca apagaram. Um resgate de memória que se recusa à museificação polida das biografias convencionais. Há dor nesse filme. Não só nas imagens, mas no ritmo, nos silêncios, na respiração curta da protagonista. Cynthia Erivo, numa atuação que mais parece incorporação, nos entrega uma Harriet que já não tem lugar entre os vivos comuns, e é exatamente por isso que ela nos assombra tanto.
Não foi sempre assim. Antes de ser lenda, Harriet foi Minty, nascida Araminta Ross, um nome que carrega o gosto agridoce daquilo que precisa ser esquecido para que se possa começar. Minty apanha, reza, sonha. Espera. E o que vem não é uma epifania, é um cansaço, um esgotamento brutal que não permite mais dobrar os joelhos. Quando ela corre pela primeira vez, não corre para viver, corre para deixar de morrer.
A cena inaugural do filme, John, o marido livre, impotente diante da arbitrariedade de uma promessa ignorada, é um aviso: a legalidade é um truque, e o amor não basta. Zackary Momoh oferece ao personagem uma dignidade discreta, talvez excessiva, quase deslocada na selvageria daquele sul pré-guerra civil. Já o Gideon de Joe Alwyn transborda ambiguidade, um senhorzinho que mais parece um vilão trágico, perturbado por um desejo mal disfarçado por sua propriedade ambulante. A relação entre os dois escorrega entre obsessão e culpa, mas nunca chega ao ponto; o roteiro, em sua tentativa de sugerir tensão sem nome, perde alguma densidade onde poderia ter cravado faca.
Mas o filme se recusa a ser refém desses homens. Quando Minty se torna Harriet, a curva já está feita. A narrativa se adensa, o compasso muda. A Filadélfia não é um descanso, é um entrelugar. Harriet chega como sobrevivente, mas entende que não basta ter cruzado a fronteira — precisa desfazê-la. É nesse ponto que o filme se agiganta. A personagem toma posse do próprio mito sem arrogância, mas com um senso de destino que não soa falso. Ela volta. Não uma vez. Não duas. Mais de treze viagens, mais de trezentas pessoas libertas, mais de trezentas existências arrancadas do fogo.
Compará-la a Moisés não é metáfora vazia. Harriet se move com uma fé que desafia tanto a lógica quanto a morte. A religiosidade que atravessa o filme, visões, cânticos, pausas, é mais que recurso de estilo: é o idioma interior de alguém que só suportou o horror porque o traduzia num código que apontava para algo maior. E Lemmons não ridiculariza isso. Pelo contrário, filma com reverência. Mas também com estranheza. Como quem não compreende, mas respeita.
Janelle Monáe, no papel da refinada Marie Buchanon, inscreve outro tipo de resistência: a do orgulho. Negra, rica, elegante, Marie é o que o sistema teme — uma mulher preta inatingível. O contraste entre ela e Harriet não é só de estética ou classe: é de método. Harriet desafia a lógica da autopreservação. Vai onde ninguém quer ir. Faz o que ninguém ousa. E por isso, é constantemente desacreditada. Não por seus inimigos, mas por seus aliados. Até mesmo os abolicionistas brancos, engomados e estratégicos, tremem diante do ímpeto daquela mulher miúda que recusa plano de fuga que não inclua todos.
O filme, aqui, se aproxima do delírio. Mas um delírio necessário. A câmera não tem pressa. A luz se mistura à névoa. Os campos ganham uma brancura onírica. A música — firmada em spirituals e timbres de igreja — nos embala em transes curtos. Harriet não é um corpo, é um vetor. Quando ela entra em transe, o filme pausa junto. E por instantes, nos convida a ver o mundo como ela: como um campo de sinais, presságios, avisos que só os condenados conseguem decifrar.
Esse misticismo talvez incomode os que esperam da biografia uma reconstituição documental. Mas “Harriet” não pretende ser cartilha histórica. O compromisso de Kasi Lemmons é outro: recuperar o que não está nos livros — o assombro, a raiva contida, o espanto de quem descobre que a liberdade existe e não é uma miragem.
Não há grandes viradas de roteiro. Porque o drama já está dado. O que o filme faz é cavar camadas. Harriet como mulher. Harriet como símbolo. Harriet como profecia. E talvez seja por isso que a sua imagem final — de costas, em silêncio, partindo — diga tanto. Ela não precisa se explicar. Já não cabe no nosso tempo. Porque é de outro. Um tempo em que coragem não era virtude. Era condição.
Lemmons entrega uma obra que resiste ao elogio fácil. A fotografia, austera. Os diálogos, secos. A direção de arte, funcional. Nada ali deseja ser belo. Tudo quer ser real. E ainda assim, há poesia. Nos olhos de Erivo. Na poeira dos caminhos. No cansaço. Na firmeza. No gesto mínimo de uma mão que toca outra e diz: “Vem, é agora”. O milagre está ali. Cru, suado, arriscado.
Harriet Tubman foi uma dessas raras figuras que a História não consegue sepultar. Porque volta. Como aviso, como eco, como chama. E o filme de Kasi Lemmons entende isso. Não nos pede que admiremos Harriet. Pede algo mais difícil: que a ouçamos. Que a escutemos, como se ainda estivesse entre nós, dizendo, baixinho, que ninguém está livre enquanto houver alguém acorrentado.
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