Em 2025, os livros de colorir ocupam prateleiras de produtos sérios. São vendidos como autocuidado, como forma de presença, como remédio para ansiedade. Estão ao lado de velas aromáticas e diários de gratidão. Tornaram-se parte de um vocabulário emocional padronizado, em que relaxar significa manter-se produtivo de uma forma silenciosa e, de preferência, fotogênica. Colorir virou uma prática legitimada. Mas também uma prática sintomática.
A promessa é simples: acalmar. Mas há algo de inquietante nesse apelo à calmaria. Os desenhos, quase sempre, são previsíveis. Mandalas, flores, animais, arabescos. Não há desconforto, não há assimetria. Raramente há algo que provoque. O traço é sempre suave, o tema sempre neutro. Como se a única forma aceitável de pausa fosse esta: bela, controlada, sem margem para erro. Um autocuidado domesticado.
Há um contraste entre a ideia de liberdade criativa e a execução desses livros. A tarefa é colorir, mas dentro das linhas. A pessoa escolhe as cores, mas não o desenho. Pode decidir a ordem, mas não o motivo. E qualquer desvio é tratado como falha — como se o gesto artístico tivesse sido transformado em prova de atenção plena. A indústria percebeu isso cedo. O mercado de livros de colorir para adultos explodiu em meados de 2015 e continua em expansão. O que antes era passatempo agora é técnica, com tutoriais, influenciadores e lives dedicadas à escolha do tom ideal para um céu sereno.
Não se trata de questionar o valor subjetivo dessas práticas. Para muitos, colorir é, de fato, uma forma de alívio. Mas é necessário observar o tipo de estética que se consolida nesse hábito. Uma estética do preenchimento. Do contorno respeitado. Da ausência de ruído. Do conforto que não interroga. A atividade que poderia ser transgressora — como já foi em outros contextos — se tornou um ritual de repetição. Uma espécie de silêncio imposto.
O gesto de criar carrega atrito. Implica hesitação, risco, invenção. Colorir livros prontos elimina esse atrito. Entrega ao sujeito apenas a função de completar. Sem falha, sem expectativa. E isso, para muitos, é o alívio: um espaço onde não há responsabilidade autoral. Mas o preço é a erosão da relação com o vazio. O papel branco, que um dia foi território de experimentação, agora assusta. Melhor um molde. Melhor algo que já venha com forma.
Talvez o mais significativo seja perceber que não se trata apenas de uma atividade, mas de um sintoma. A recusa do improviso. A evitação do erro. A substituição da criação pelo preenchimento. O sujeito contemporâneo é educado para não lidar com o inacabado. Para temer o espaço livre. Para preferir a tarefa à invenção.
E há efeitos concretos. Em clínicas, oficinas terapêuticas oferecem sessões com moldes prontos. Em cartolinas expostas, leem-se orientações como “respeite os contornos, eles te protegem”. Há relatos de crianças que, ao receberem folhas em branco, travam. Choram. Dizem não saber por onde começar. Aprenderam que sem linha não há segurança. E muitos adultos carregam essa ideia para sempre.
A pergunta “por que ainda estamos colorindo livros em 2025?” é menos ingênua do que parece. Estamos colorindo porque precisamos de refúgios. Mas escolhemos refúgios que não nos desafiem. E transformamos o gesto da criação em um exercício de controle.
A crítica não é ao ato de colorir. É ao esvaziamento do sentido criativo nesse ato. À forma como ele é embalado, comercializado, estetizado. À substituição da liberdade pelo manual de instruções. E ao fato de que, pouco a pouco, vamos nos esquecendo de que criar é, antes de tudo, errar.
Há uma diferença fundamental entre traçar uma linha e preencher uma linha traçada por outro. Em tempos de exaustão emocional e hiperprodutividade simbólica, talvez seja mais confortável ficar com a segunda opção. Mas é na primeira que reside a possibilidade de ruptura.
Colorir um céu traçado por outra mão pode ser repouso. Mas também pode ser prisão. Depende de como, por que e para que se segura o lápis. Enquanto isso, o papel em branco aguarda. E o silêncio — esse sim — continua sendo insuportável.