Ele tinha Alzheimer, mas se lembrava de um único livro. Todos os dias

Ele tinha Alzheimer, mas se lembrava de um único livro. Todos os dias

O diagnóstico, quando veio, não foi anúncio nem surpresa. Foi um nome seco numa folha branca: Alzheimer. Estágio intermediário. Avanço lento, progressivo, cruel. A essa altura, Elias já confundia as chaves com moedas e a geladeira com armários. Chamava a filha de Clara, depois de Lúcia, Ana, Cristina, embora nunca tivesse conhecido nenhuma Clara. Dizia que o tempo estava escorrendo pelas janelas.

Mas ainda assim, todos os dias, pedia: onde está o meu livro? E, quando o encontrava, dormia com ele. Sempre o abria na mesma página: aquela em que Macondo amanhece com a peste do esquecimento.

Ele ria. Ria alto. Como se fosse piada pessoal, lembra a filha Walkíria, como se dissesse: vejam só, Macondo também apodreceu da cabeça.

Cem Anos de Solidao
Cem Anos de Solidão: o último lugar que Elias lembrava — e onde escolheu permanecer

Era “Cem Anos de Solidão”. Capa gasta. Folhas amareladas e cheias de dobras. Tantas que o volume parecia ter vivido mais do que o homem que o segurava. Alguns diziam que ele fora professor de literatura, mas não foi. Outros afirmavam que tinha conhecido García Márquez no México, em 1979. Também não. O que se sabia era isso: Elias acordava todos os dias sem reconhecer o mundo, mas reconhecia Macondo. Mais que isso, habitava Macondo. Atravessava suas ruas de barro, ouvia os tiros da guerra civil, sentia o cheiro do gelo que um dia José Arcadio Buendía tocou pela primeira vez. Cada nome, cada maldição, cada árvore frondosa e amaldiçoada.

O tempo, para ele, girava em círculos. E dentro desses círculos, ele caminhava.

Elias nasceu em Goiânia. Ali cresceu, casou, teve filhos, envelheceu. Foi em Goiânia que tudo começou a escurecer, lentamente, como um entardecer fora do relógio. Era uma cidade de ruas largas, calçadas abafadas, calor constante. Uma cidade viva, mas que para ele começava a se desfazer nos contornos. Ele esquecia nomes de avenidas, confundia o portão de casa com o do vizinho, chamava os ipês de flamboyants. Mas ainda assim, lembrava com precisão onde ficava Macondo.

A esposa dizia que o livro o lia de volta. Não era metáfora. Era assombro. Ele não lia mais as palavras como antes. Não decifrava. Invocava. Extraía as frases como se estivessem escritas sob a pele do esquecimento. Quando alguém tentava interromper sua leitura, ele fechava os olhos e recitava trechos inteiros, como quem segura a própria casa entre os dentes.

“Memória não é o que lembramos. É o que insiste quando o resto foi embora.” Isso quem disse foi a cuidadora, Jandira — uma moça magra, de voz de algodão e uma caneta sempre presa no coque. Começou a trabalhar na casa quando Elias ainda se orgulhava de sua “memória de elefante”. Dizia que ele parecia mais lúcido quando lia.

Mas não lia. Era possuído.

A filha atribuía tudo à emoção afetiva ancorada, repetindo os termos da neurologista. Mas Elias não amava Macondo como se ama um neto ou uma fotografia. Macondo era seu nome de infância, talvez. Ou talvez fosse sua rua. Sua rua perdida. Uma alucinação compartilhada com García Márquez. Um pacto. Um refúgio que, paradoxalmente, não era fuga, mas fundação.

Elias esquecia de comer, de beber, de fechar a porta. Mas lembrava que Amaranta costurava sua mortalha em segredo, que Remédios subiu aos céus entre lençóis, que o general Aureliano Buendía lutou trinta e duas guerras e perdeu todas. E, acima de tudo, lembrava que o tempo naquela cidadezinha fictícia era um animal circular, mordendo o próprio rabo.

Num dos dias mais quentes do verão, Elias ficou em silêncio por horas. O livro permaneceu fechado sobre a mesa. A neta, preocupada, perguntou se estava tudo bem. Ele disse apenas: hoje Macondo está chovendo demais.

Não era metáfora. Era cronologia interna. Estava preso na chuva de quatro anos, onze meses e dois dias. Passava horas molhado por dentro. E ninguém mais podia secá-lo.

Os médicos observavam com fascínio técnico. Memória seletiva, diziam. Preservação límbica. Sintomas raros, mas não inéditos. Como se isso bastasse. Como se classificar o espanto fosse o mesmo que entendê-lo.

Mas não havia explicação. Apenas constatação. Elias era um homem cujo mundo havia se reduzido a um só livro — e mesmo esse, não exatamente lido, mas vivido. Um livro como extensão da mente. Último território habitável depois que a linguagem comum havia sido devastada.

Houve um dia, próximo ao fim, em que ele olhou para a neta e disse: acho que nasci em Macondo e fui sequestrado por esse lugar. Ela não respondeu. Não sabia se ele brincava, delírio ou profecia. Ele parecia sério. Mais sério do que em qualquer outra fase da doença. Aquilo que parecia confusão era, por um instante, lucidez mineral. Pedra dura de sentido.

Estou voltando, ele disse. E ninguém soube para onde.

Quando morreu, a família decidiu não fechar o livro. Ficou sobre seu peito, aberto na página que ele mais lia. A página do esquecimento. A filha pediu silêncio. A neta, que nunca havia lido García Márquez, folheou o volume. Disse que o cheiro era o mesmo do avô.

Alguns dias depois, a cuidadora achou um papel dentro do livro. Elias havia escrito, com letra trêmula:

“Se esquecer de tudo, lembre disso: a cidade de Macondo foi riscada do mapa por um vendaval que durou dias, e ninguém mais soube onde ficava, nem se era real. Mas era”.

Assinou como Aureliano. Não como Elias. A última palavra que disse antes de se calar de vez foi essa: Macondo.

Não adeus. Não livro. Não ninguém. Disse Macondo como quem volta para casa. A boca seca, o olhar fixo num ponto qualquer, como quem reconhece, enfim, a cidade que, mesmo inventada, é mais sua do que o mundo.

Talvez a memória não seja o que lembramos. Mas o que sobrevive depois que não restamos mais. Talvez os que esquecem não desapareçam. Apenas mudam de lugar. Talvez Macondo não seja invenção. Mas destino. Cidade dos que restam. Cidade dos que lembram por nós.

Revista Bula

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