O pó ali não vem da terra vermelha do sertão, mas do concreto gasto, das paredes sem reboco, da rua que mal foi rua. Ele gruda no rosto, nos dedos, nas páginas. Tem dias em que o céu parece baixar, pesado, de tão abafado. E mesmo assim, eles estão lá — os sumidos, como se chamam. Sete, às vezes nove. Sentados no chão rachado de uma garagem emprestada, um sofá velho encostado no fundo, dois tijolos servindo de estante. A leitura, para eles, não é passatempo. É um jeito de adiar o desespero. Um jeito de esquecer que a barriga está vazia e a geladeira também.
Estão na Cidade Estrutural, uma das regiões administrativas mais pobres do Distrito Federal e, paradoxalmente, a poucos quilômetros do centro do poder. Dá para ver as luzes do Plano Piloto do alto de uma laje. Mas ninguém vê de volta. Ali, é outro Brasil. O transporte falha, a água falha, o Wi-Fi é eventual e o feijão, contado. Ainda assim, o grupo se reúne toda semana. Chuva, calor, sirene. Vêm.
Todos são menores de idade. Seus nomes foram trocados por iniciais ou apelidos, como um tipo de código íntimo, gesto de cuidado e anonimato.
E. é o que mais lê. Ninguém entende como, mas já decorou trechos inteiros de Graciliano Ramos, como quem coleciona sobrevivências. “‘Vidas Secas’ é igual aqui, só que lá tinha cabra”, comenta. M. lê poesia. “Pra deixar leve o que é pesado.” Jujuba — apelido herdado da avó — prefere suspense. “Gosto de ver tragédia que não é a nossa.”
Foi dona Cleide Coutinho, professora da escola pública do setor Leste, quem trouxe a primeira caixa de livros. Vieram por doação de uma ONG de Brasília que nunca pisou na Estrutural. Lobo Antunes, Toni Morrison, Mark Twain, Mia Couto. “Esses nomes difíceis que falam coisa que a gente sente, mas não sabia que podia virar frase”, diz R., lendo com o dedo, linha por linha.
Às vezes, leem em voz alta. Um ou outro tropeça nas sílabas, outro interrompe para perguntar o que quer dizer. Mas ninguém ri. No último mês, S. leu Conceição Evaristo e chorou no fim. “Era igual à minha mãe”, murmurou.
Na casa de M., o almoço foi abóbora cozida e sal. Ainda assim, ela trouxe o livro de volta. “Tem que rodar. Todo mundo tem que esquentar um pouco com ele.”

Mais de 40 mil pessoas vivem na Estrutural, em ruas estreitas, lotes improvisados, concreto mal curado. Brasília é a unidade da federação com maior desigualdade de renda no país — e a Estrutural é seu ponto cego mais visível. Enquanto bairros nobres têm renda per capita europeia, ali ela não alcança nem mil reais mensais. Os adolescentes não fazem essa conta. Sabem apenas que não têm.
Os livros circulam entre mochilas rasgadas, caixas de papelão, plásticos improvisados. Alguns chegam com dedicatória, como se os antigos donos intuíssem que aquelas páginas cairiam em mãos famintas. “Para quem precisar fugir um pouco”, escreveu uma tal de Lúcia na contracapa de “Ensaio Sobre a Cegueira”.
“Ler com fome dá raiva”, diz B. “Mas depois… parece que você saiu um pouco. Só volta quando fecha a página.”
Eles não leem para vestibular nem para boletim. Leem porque é isso ou o vazio. Leem para durar. Para se manterem inteiros. Para decifrar um mundo que lhes nega legendas. “A gente não entende tudo, mas sente”, diz E., que anota palavras difíceis num caderno escondido sob o colchão.
A garagem onde se encontram foi cedida por uma vizinha que se cansou de ver adolescentes largados. “Se é pra ler, pode vir.” Às vezes falta luz. Então vêm com vela, com lanterna, ou com aquele celular velho que parece mais milagre do que máquina — o único que ainda liga, o único que ainda brilha um pouco no escuro. Mas vêm.
Dona Cleide empresta livros do próprio acervo. “Eles têm sede que a escola não dá conta”, comenta. “Não querem resumo. Querem o começo, o meio, o fim.”
A biblioteca improvisada, tábuas apoiadas em latas de tinta, tem mais livros remendados do que intactos. Mas todos são tratados como relíquia. Nenhum tem capa dura. Todos têm história.
Alguns somem por semanas. Vão cuidar de irmão, buscar comida, ajudar em casa. Mas voltam. Com perguntas, saudade, urgência. “Ele morre mesmo?” “Aquilo era amor ou só falta de opção?”
Jujuba leu um livro inteiro para a tia analfabeta. “Ela dormiu sorrindo. Fazia tempo.”
Não se trata de redenção. A fome continua. O medo continua. Mas entre a última colher de arroz e a próxima ausência, há esse intervalo silencioso, onde o mundo, por um instante, pesa menos. Onde o livro vira casa.
Um deles — talvez M., talvez B., é difícil lembrar — escreveu numa contracapa já sem lombada: “Aqui ninguém morre de fome de tudo, mas às vezes falta o nome das coisas. O livro ajuda a lembrar”.
E talvez seja isso. Eles leem para lembrar que são. Para lembrar que ainda estão. Para que, algum dia, alguém leia de volta.