“Interestelar”, dirigido por Christopher Nolan e escrito em parceria com seu irmão Jonathan, não é apenas um épico espacial: é uma tentativa de vasculhar o tempo como quem tateia os bolsos de um casaco antigo à procura de algo que nunca coube ali. A narrativa se desenrola num futuro estéril, onde o milho agoniza, a ciência é tratada como superstição e o ar já não carrega promessas. A esperança, exaurida de horizontes, olha para cima e tenta, mais uma vez, fugir da Terra. Mas não se trata de tecnologia ou conquista, trata-se de luto. O que o filme encena, por trás do aparato sideral, é uma elegia doméstica em gravidade alterada, uma tentativa de reconstruir vínculos que o tempo, ou a ausência, ou a falha humana, desfez sem aviso.
A performance de Jessica Chastain, como a versão adulta de Murphy, é igualmente poderosa. Sua personagem, uma cientista em meio ao colapso global, é o núcleo emocional do filme. É ela quem traduz a lacuna entre gerações em inquietação científica. Sua atuação não se apoia em gestos expansivos, mas em uma tensão contida, capaz de tornar verossímil a mistura de ressentimento, saudade e racionalidade. O espectador não precisa ser pai nem filha para compreender o peso daquela ausência prolongada. A dor é universal, mesmo quando se desloca por dobras gravitacionais.
Anne Hathaway, como a astronauta Amelia Brand, representa o contraponto teórico à emoção de Cooper. Sua defesa de que o amor seria uma força quântica — frase que gerou reações apressadas e zombarias de certa crítica — não é uma licença poética vazia, mas uma provocação narrativa. Nolan, longe de querer competir com Carl Sagan ou Kip Thorne (consultor científico do filme), usa a ciência como metáfora para testar os limites da empatia humana. Essa escolha, por mais arriscada, confere ao roteiro uma ambiguidade rara no gênero: nem cético demais, nem crédulo. Apenas curioso.
Em termos técnicos, “Interestelar” é uma conquista singular. A trilha sonora de Hans Zimmer não sublinha emoções; ela as molda. O uso do órgão como instrumento central adiciona à narrativa uma gravidade litúrgica, quase eclesiástica. O som não vem apenas da partitura, mas do espaço entre as notas. As sequências em mundos com dilatação temporal são exemplos de precisão rítmica e montagem inteligente. Aquele planeta onde cada hora custa sete anos na Terra não é apenas uma alegoria sobre escolhas — é uma simulação angustiante de perda em tempo real. A direção de fotografia de Hoyte van Hoytema, por sua vez, evita a estética de laboratório clínico que muitos filmes do gênero adotam. Em vez disso, opta por paisagens granulosas, com cores que oscilam entre o sepulcral e o sideral.
Nolan sabe que o espaço não é um cenário, mas um espelho. Sua obsessão por estrutura narrativa — evidente em obras anteriores como “A Origem” ou “Amnésia” — aqui encontra sua forma mais madura. O tempo, tema recorrente em sua filmografia, é tratado com uma seriedade quase filosófica. Há um risco nisso, claro. Em certos trechos, o filme se aproxima perigosamente da autoindulgência, como se a densidade conceitual bastasse para justificar suas quase três horas de duração. Mas, ao contrário do que se acusou à época, “Interestelar” não é um tratado científico com pretensões líricas. É uma elegia, antes de tudo. E como toda elegia, às vezes tropeça no excesso.
Em comparação com marcos anteriores do gênero, “Interestelar” se posiciona de maneira ambivalente. Enquanto “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, permanece como o pilar frio da ficção científica autoral — mais enigma do que narrativa —, “Interestelar” aposta em calor humano. Não almeja respostas definitivas, mas perguntas que ecoam. “Gravidade”, de Alfonso Cuarón, é mais sintética, mais rigorosa, quase uma ópera visual de sobrevivência. Já “Perdido em Marte”, dirigido por Ridley Scott, oferece pragmatismo otimista. Nolan, por outro lado, prefere o abismo. E não apenas o espacial.
O robô TARS, com sua linguagem lacônica e estrutura geométrica improvável, sintetiza a ironia do filme: uma máquina, sem rosto nem passado, é o personagem mais confiável. Sua presença não suaviza a narrativa; acentua a solidão. Em “Interestelar”, a tecnologia não é milagre nem ameaça. É ferramenta. O que falha — sempre — são os vínculos humanos. A incomunicabilidade. O amor que chega tarde demais.
É justamente essa dimensão emocional que torna o filme relevante para além de suas especulações cosmológicas. “Interestelar” propõe que a ciência, por mais avançada, ainda não é capaz de substituir a perda. Nem de restaurar um abraço. Ao final, o reencontro entre pai e filha não resolve nada. Já se perdeu tempo demais. E o que se recupera é apenas símbolo — um gesto póstumo de reconciliação, como quem tenta deixar um bilhete numa biblioteca há muito abandonada.
Em termos de trustworthiness, é importante reconhecer que o filme se apoia em sólidas bases científicas. O envolvimento de Kip Thorne assegura precisão nas representações de buracos negros e dilatação temporal. A própria visualização do Gargântua, o buraco negro central da narrativa, foi considerada tão acurada que gerou publicações acadêmicas. Isso, contudo, não transforma o filme em uma aula de astrofísica. Nolan não cede ao didatismo. Ele quer maravilhar, não explicar. E é justamente nesse limiar — entre a plausibilidade e a imaginação — que “Interestelar” encontra sua força.