Cada grão de areia, cada folha de cacto, cada escarpa de rocha guarda um pouco dos episódios inescapavelmente conflituosos protagonizados pelos vaqueiros americanos no transcurso de 250 anos, harmonizados aos trancos e barrancos à custa de sangue, suor, lágrimas e o aço dos revólveres, sempre em defesa da liberdade — sobretudo a sua própria. Mesmo a Constituição dos Estados Unidos inspira-se nesse arrojo dos caubóis, malgrado esse conceito, por natureza tão ambíguo, perca-se e degenere muitas vezes em justificativa para a intolerância, o ódio e o derramamento de sangue. O império da lei era ainda um cenário distante em 1880, quando se desenrola a história de “Rápida e Mortal”; homens corretos, bandidos e meretrizes encontravam uma maneira qualquer para conviver em harmonia, e desses acordos tácitos nasciam relações que, não raro, sobrepujavam a morte. Histórias como essa, sobre indivíduos que desfilam na corda bamba da existência, na qual ficariam para sempre, até que sofrem um baque ainda maior do que aqueles a que estavam habituados, nunca saem da mira do espectador, e no filme de Sam Raimi isso resta mais e mais claro à medida em que vão se amalgamando tipos em diferentes níveis de marginalidade, uns mais sedutores, outros desabridamente tempestuosos, francamente abjetos.
O roteiro de Simon Moore conta de um torneio anual em que os litigantes disparam uns contra os outros, até que sobre apenas um homem com vida. A brincadeira é patrocinada por John Herod, um ricaço excêntrico que mora numa casa modesta no fim da rua principal da fictícia Redemption, e admite qualquer um, mas dessa vez parece que haverá novidades. Um par de forasteiros, um garoto e uma mulher, chegam à cidade, cada qual com uma motivação especial, conforme se vai assistir, e o filme move-se em cima desse eixo, explorando as fraquezas e tantas idiossincrasias do trio de personagens. Enquanto isso, Raimi abusa dos elementos visuais, a exemplo da fotografia deDante Spinotti, para dar consistência dramática ao enredo, com destaque para o relógio do vilarejo, pelo qual os contendores se orientam, esperando que soem as doze badaladas do dia e os duelos comecem. Aos poucos, o diretor apresenta Kid e Ellen, a rápida e mortal do título, ambos ligados a Herod de alguma maneira.
É só a partir do segundo ato que Ellen ganha a devida importância, surgindo como uma espécie de musa diabólica, talvez mantendo um segredo e planejando uma vingança para reparar ofensas da juventude. Sharon Stone passa a conduzir a trama, como deveria ter sido desde o princípio, dando oportunidade para que Leonardo DiCaprio sugira o mistério um tanto óbvio a juntar Kid e Herod. Raimi, diretor e produtor de arrasa-quarteirões a exemplo de “Não Se Mexa” (2024), dirigido por Adam Schindler e Brian Netto, e “A Morte do Demônio” (2013), levado à tela por Fede Alvarez, aproveita o talentode Gene Hackman (1930-2025) e o contrapõe a uma estética de história em quadrinhos, num arranjo inventivo que remete aos videoclipes dos anos 1990. Voltando aos clássicos a seu modo, Raimi alcança um olhar que congrega o pop e o tragicômico, com louvável sensibilidade, malgrado não exista nada exatamente revolucionário ou mesmo original aqui.
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