Faça o amor grande de novo

Faça o amor grande de novo

Tocava uma velha música do Chico: “Quando o carnaval chegar”. Enquanto mastigava a melhor esfirra do planeta, eu via as pernas de louça de uma moça que passava e, na ponta dos pés, inclinando o corpo gentil para frente, pedia, por favor, gente boa, não coloque açúcar no meu suco. Quanta doçura.

É gozado como nos afeiçoamos por pessoas desconhecidas que frequentam os mesmos lugares que a gente. Foi assim com o Quequé, um sujeito grisalho e franzino que aparentava ter setenta e tantos. Via-o sempre na Lanchonete da Tia Eloá, no centro, uma região da cidade que eu insistia em frequentar, a despeito estar muito mal-cuidada pela administração municipal.

Quequé fazia sempre o mesmo pedido: café coado sem açúcar e pão francês com mozarela na chapa. Era um sujeito gentil, boa praça, de aparência simplória, muito bem-quisto pelas atendentes e pela proprietária da birosca. Já tínhamos trocado cumprimentos um par de vezes. Naquela manhã, trajando uma camisa floral aberrante e óculos de sol estilo voador, ele se sentou ao meu lado.

— Bom dia, doc.

— Bom dia, Quequé. Como vai?

— Piorando a cada dia, graças a Deus.
Sorri.

— Ainda cheirando pererecas, doc?

— Faz parte do meu trabalho, Quequé. Embora, eu tenha perdido o olfato, já faz um tempo.

— Sério?

— Sério.

— O que aconteceu? COVID?

— Acredito que não. Tive muita sorte. Sou asmático. Fui acometido pelo coronavírus uma única vez. Infecção assintomática. Saí ileso, ao contrário de vários colegas que acabaram morrendo durante a pandemia.

— A peste chinesa foi um pesadelo terrível. Pior que ninguém fala mais nisso. Continuamos os boçais de sempre. Não aprendemos nada com a pandemia, doc, verdade seja dita.

— Concordo.

— Não sente cheiro algum? Nadica de nada?

— Nadica de nada. Nem cheiro bom, nem cheiro ruim.

— O senhor deveria procurar um médico.

— Uma hora, eu vou.
Sorrimos.

— Se eu fosse doutor, escolheria ginecologia também. De vez em quando, deve pintar cada colosso no consultório…

Tinha tempo que eu não ouvia a palavra “colosso”. Soava tão cafona e antiquada quanto o centro da cidade e o Quequé.

— Qual é o seu nome de batismo, Quequé?

— Ezequiel. Odeio esse nome.

— Quequé, é o seguinte: nós, ginecologistas, fomos treinados para examinar as pacientes sob um crivo estritamente profissional, com muito respeito, com muito cuidado, sem malícia.

— Sei. Mas, de vez em quando, um ou outro colega do senhor mete os pés pelas mãos, comete descompostura e acaba pintando nas manchetes dos jornais.

— Infelizmente, você tem razão. Mas, é aquele tipo de deslize ético que pode suceder em qualquer ambiente de trabalho.

— Mas, fica pior quando envolve médicos. E padres também.

— De fato.

Mordi a esfirra suculenta e dela vazou um filete de azeite que respingou sobre a manga da minha camisa.

— Cuidado, doc. Tome aqui um guardanapo.

— Obrigado, Quequé. Ainda não acordei direito. Sou muito desastrado no período matutino. Ando cansado.

— Eu já me aposentei.

— Sorte sua. Estou doido para parar também. Qual a sua idade?

— Setenta e três. E o senhor?

— Sessenta.

— Tá novão, doc. Tem muito querosene para queimar. Eu trabalhei a minha vida inteira em banco. No Banco do Brasil, para ser mais exato.

— Que coincidência. Meu pai foi funcionário do Banco do Brasil, naquela época em que bancário ganhava mais do que juiz de direito.

— Isso é verdade. Peguei o finalzinho dessa fase. Hoje, não. Hoje, a carreira de bancário tá uma merda. Acabei arrumando um bom casamento. A mulherada caía matando, sabe? Principalmente, nas cidades do interior. A gente nadava de braçada. Era uma maravilha.

— Meu pai cultivava uma enorme gratidão pelo banco. Vivia repetindo que tudo que ele tinha conseguido na vida devia ao Banco do Brasil.

— Seu pai ainda é vivo, doc?

— Infelizmente, não.

— Sinto muito. O que aconteceu?

— Ele morreu, há cinco anos, por conta de uma obstrução intestinal aguda.

— Nó nas tripas?

— Nó nas tripas.

— Sinto muito, doc. Perder pai e mãe é horrível.

— Nada que se compare a perder um filho.

— Morte de filho é sacanagem de Deus. Estorva a vida da gente para sempre.

Nesse momento, Quequé retirou do bolso dois comprimidos com formatos diferentes que ele depositou sobre a palma da mão.

— Hora dos remedinhos. A evolução da ciência é uma coisa impressionante. No início, eu tomava uma sopa de comprimidos todo santo dia; hoje, eu só tomo quatro.

— Pressão alta?

— Retrovirais.

— Não entendi.

— Retrovirais.

— Antirretrovirais, você quer dizer.

— Exatamente, doc. Eu sou soropositivo.

Não contava com a revelação bombástica durante uma conversa informal, àquela hora do dia. Disfarcei a estupefação abocanhando o meu lanche. Pensei em perguntar como ele tinha se contaminado, mas domei a curiosidade mórbida.

— Quem cuida de mim é o doutor Quimarques. Conhece?

— Sim, claro. Foi um de meus professores na graduação. É um excelente infectologista.

— Ele é muito carinhoso também. O senhor sabe que não anda fácil encontrar profissionais da medicina que sejam atenciosos e humanistas. Têm colegas do senhor que sequer encostam a mão na gente. Parece que têm nojo. Não sei por que isso acontece. Só sabem pedir exames e mais exames. Um escândalo.

— Infelizmente, acontece muito.

— Não vai perguntar como eu me infectei, doc?

— Não me ocorreu perguntar uma coisa tão pessoal, Quequé.

— Eu fui casado. Tive três filhos. Tenho cinco netos. A gente não se vê muito. Eles têm medo de mim, o senhor acredita? — abriu um sorriso desconcertado.

— Então, todos os seus familiares sabem da sua condição?

— Sim. Todos sabem. Eu preferi contar.

— Como anda a sua carga viral?

— Zerada. O doutor Quimarques disse que a carga viral está indetectável, mas, que eu não devo parar os medicamentos. Descobri a infecção faz uns trinta anos, doc. Por causa do emprego, eu viajava muito. Sempre fui um cara fogoso. Então, passava o rodo na mulherada. Adorava fazer sexo. Ainda gosto, mas, nunca mais tive coragem de transar com ninguém. Tenho medo de infectar as pessoas. Pior que eu suspeito de ter pego a doença de uma mulher casada. Tenho quase certeza disso.

— Entendo.

— Nunca joguei água fora da bacia, doc. O meu negócio é mulher, sempre foi. Só que eu não me prevenia. Nunca usei camisinha, pro senhor ter uma ideia. Eu era burro. E continuo sendo, só que um burro mais velho. Por causa das viagens constantes e, provavelmente, por causa da falta de atenção e de carinho, a minha ex-mulher acabou arranjando um amante. Não a culpo por isso. Fiquei sabendo do romance quando abri o jogo com ela.

— Ela é soropositiva também?

— Graças a Deus, não. Escapou do vírus e de mim. Paciência. Vida que segue. Passei por todas as fases. Negação. Revolta. Medo. Tristeza. Aceitação. Lido relativamente bem com o problema, embora, sinta falta da família, de estar próximo, do contato físico, sentimentalidades assim, sabe como é. Evito me deixar abater. O preconceito é terrível, doc. Talvez, eu devesse ter guardado segredo. Mas, não podia esconder da minha companheira uma coisa tão grave. Seria covardia.

— O importante é que você esteja bem de saúde, Quequé. Onde você mora?

— Eu moro sozinho, aqui perto. Não é um lugar muito confortável, mas dá para o gasto.

— Deve ser bom morar no centro. Aqui tem tudo o que uma pessoa precisa.

— Verdade, doc. Mas, falta zelo. A prefeitura simplesmente nos abandonou.

— É lastimável. Quando adolescente, andei muito por essas ruas. Conhecia o centro da cidade como a palma da minha mão.

— Eu gosto de morar aqui. Acho que estou tão decadente quanto o centro da cidade. Também já me acostumei com os malas, com os noias, com os moradores de rua. Em certa medida, eu me sinto tão à margem da sociedade quanto eles. Somos farinha do mesmo saco, doc.

— No final das contas, todos somos, Quequé. Preciso ir andando. Foi ótimo conversar com você. Continue se cuidando.

— Obrigado por me ouvir, doc. Eu estava precisando me abrir com alguém. É duro não ter com quem desabafar de vez em quando.

— Sou um bom ouvinte. Podemos conversar sempre que você quiser.

— Doc, com todo respeito, eu notei quando o senhor pregou os olhos nos mocotós daquela beldade, a mocinha do suco detox sem açúcar.

Há séculos, não ouvia alguém chamar uma mulher bonita de “beldade”.

— Seja sincero, doc. Foi com malícia ou sem malícia que o senhor olhou?

— Foi com malícia, Quequé… Foi com malícia.

Gargalhamos. Paguei a conta e ganhei as fedorentas ruas do centro da cidade.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.