Era do TikTok: suspense e tecnologia se misturam em filme na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Era do TikTok: suspense e tecnologia se misturam em filme na Netflix

Há algo de profundamente simbólico na escolha de “M3GAN” como o primeiro grande lançamento de um novo ciclo cinematográfico. Não apenas por seu apelo estético e comercial, mas porque sintetiza, com notável precisão, a crise de identidade do cinema de gênero no século 21. Um filme que se apresenta como inovação, mas cuja espinha dorsal remonta a arquétipos exaustivamente explorados. Como um algoritmo treinado em referências, M3GAN recicla traumas e temores já conhecidos, da possessividade homicida de “Brinquedo Assassino” à lógica inescapável de “O Exterminador do Futuro”, e os recompõe em uma embalagem adaptada ao imaginário digital da era TikTok. O que se tem, portanto, não é exatamente uma história original, mas um produto meticulosamente desenhado para parecer novo.

Na superfície, a premissa parece engenhosa: uma criança devastada pela perda repentina dos pais é acolhida pela tia, uma engenheira de tecnologia avançada que, incapaz de lidar com o luto alheio, decide terceirizar o cuidado emocional da menina a uma inteligência artificial de aparência infantil. Essa androide, a tal Model 3 Generative Android, ou simplesmente M3GAN, não apenas aprende com o ambiente, mas adapta sua lógica a uma ética própria, alimentada pelo imperativo de proteger sua usuária a qualquer preço. O elo criado entre Cady (Violet McGraw) e a androide é tanto afetuoso quanto inquietante, e a performance dividida entre Amie Donald e Jenna Davis imprime à personagem uma fisicalidade quase ritualística, alternando entre doçura mecânica e ameaça latente. O verdadeiro desconforto do espectador, porém, não nasce da violência em si, mas do modo como ela é mediada por uma lógica artificial, uma lógica que, a certa altura, torna-se indistinguível da humana.

O que impede “M3GAN” de alcançar um patamar mais elevado, contudo, não é sua familiaridade temática, mas o desequilíbrio interno de sua estrutura. Enquanto os dois primeiros atos investem na construção de tensões morais e psicológicas, o terceiro cede ao apelo do espetáculo fácil, entregando-se a uma escalada de violência que pouco dialoga com o rigor narrativo anteriormente estabelecido. A coerência da androide, que até então eliminava ameaças justificáveis, dissolve-se em uma sucessão de mortes que parecem servir mais à catarse do público do que à lógica do personagem. O filme, nesse momento, escorrega do comentário social para o fan service, uma transição que enfraquece sua proposta e compromete parte de seu potencial crítico. O que poderia ser uma reflexão potente sobre dependência emocional, infância tecnologizada e luto digitalizado transforma-se, subitamente, em um exercício de estilo.

Ainda assim, seria precipitado descartar “M3GAN” como mera repetição disfarçada. A eficiência com que manipula expectativas, seja por meio do ritmo narrativo preciso, seja pelo humor que flerta com o absurdo sem mergulhar no ridículo, demonstra uma consciência aguda de seu próprio estatuto como produto cultural. A familiaridade com que o público reconhece os elementos da trama não é um acidente, mas parte do projeto: trata-se de entregar exatamente aquilo que se espera, com o mínimo de subversão necessário para manter a ilusão da novidade. O fato de esse artifício funcionar, e funcionar tão bem, diz menos sobre o talento dos roteiristas e mais sobre o estado atual da indústria: uma engrenagem que gira não para inovar, mas para consolidar formatos com eficiência mercadológica.

“M3GAN” não é um erro nem um acerto absoluto, é um termômetro. Mede o quanto estamos dispostos a trocar o inusitado pelo reconhecível, a aceitar o simulacro em lugar da ruptura, a nos emocionar com o que já vimos, contanto que venha revestido em linguagem atualizada. Sua força não está na história que conta, mas na forma como a disfarça: com aparência de sátira, ritmo de thriller e tempero digital. Se há algo de brilhante em sua concepção, é a maneira como transforma um passado reciclado em um entretenimento que, ainda que previsível, é inegavelmente funcional. E talvez esse seja o traço mais assustador de todos.

Filme: M3GAN
Diretor: Gerard Johnstone
Ano: 2022
Gênero: Ficção Científica/horror/Thriller
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★