Delírio e fantasia: ícone do cinema é recriado, amparado pelo inegável talento de Timothée Chalamet Divulgação / Warner Bros.

Delírio e fantasia: ícone do cinema é recriado, amparado pelo inegável talento de Timothée Chalamet

Se há algo mais difícil do que criar magia no cinema é recriá-la a partir de um legado. “Wonka” parte dessa tarefa espinhosa com ares de desafio criativo: não se contenta em apenas recontar a gênese do icônico chocolatier de “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, mas arrisca em algo mais ambicioso: tecer um novo imaginário sobre um velho conhecido, sem trair o encanto original nem se curvar à nostalgia preguiçosa. Na superfície, tudo poderia parecer um produto de conveniência industrial, concebido sob medida para lucrar com o apelo afetivo de gerações que cresceram entre Oompa Loompas e rios de chocolate. Mas o filme, sob a direção inventiva de Paul King e roteiro coassinado com Simon Farnaby, desarma esse ceticismo ao construir, camada por camada, um universo que flerta com o absurdo, mas é regido por uma coerência interna que só a boa fantasia é capaz de sustentar.

O pacto que o filme exige é claro desde os primeiros minutos: ou o espectador se entrega ao improvável: a flores comestíveis que dançam ao toque, a baús de chocolate vigiados por monges e a festas que explodem na boca, ou será permanentemente deslocado da narrativa. Mas esse pacto, longe de ser imposto com rigidez, é oferecido com uma ternura quase desarmante. A fantasia aqui não é um refúgio escapista, mas uma lente de aumento sobre o poder transformador da ingenuidade e da resiliência. Ao acompanhar a trajetória de um jovem Willy Wonka ainda anônimo, sonhador até a vertigem e moralmente irredutível mesmo diante da miséria, o filme reposiciona o protagonismo infantil, não mais como idealização pura, mas como resistência poética ao cinismo cotidiano. Há uma beleza subversiva nessa decisão: tornar a doçura uma arma legítima contra a crueldade do mundo adulto.

Timothée Chalamet, nesse contexto, torna-se mais do que o intérprete de Wonka; ele é o próprio catalisador da fábula. Conhecido por papéis densos e introspectivos, como em “Duna”, o ator surpreende ao abraçar um registro leve, quase lúdico, sem escorregar no caricatural. Sua voz, mesmo sem potência vocal notável, é utilizada com inteligência em números musicais que priorizam o charme e a encenação em vez da técnica, o que é, aliás, uma escolha estética coerente com o tom fabulesco da obra. Há um senso de verdade em seus gestos, uma leveza de corpo que contrasta com a gravidade da realidade ao redor. O elenco de apoio, por sua vez, transita com alegria entre o grotesco e o cômico: Olivia Colman, Keegan-Michael Key, Paterson Joseph, Matt Lucas e Matthew Baynton não temem o exagero, e esse excesso calculado torna-se, paradoxalmente, uma forma precisa de crítica, o riso como denúncia da ganância, a farsa como disfarce da violência sistêmica.

Mas não se trata apenas de atuação. “Wonka” impressiona por seu cuidado em todos os detalhes visuais e sonoros. A direção de arte constrói um cenário que remete a um teatro barroco em estado de sonho: vitrines transbordantes de doçura, ruas com geometrias impossíveis, cores que beiram o surreal. É uma estética que comunica encantamento sem precisar explicá-lo, como se dissesse: “Não questione, sinta.” O figurino reforça esse pacto sensorial com texturas exuberantes e paletas que variam entre o pastel lúdico e o opulento burlesco. As canções de Neil Hannon, ainda que não aspirantes a clássicos eternos, funcionam como pontes narrativas eficazes, e o uso pontual de “Pura Imaginação” como fio condutor emocional atua menos como aceno nostálgico e mais como celebração de um ideal que resiste ao tempo.

Em meio a tanto brilho, é fácil esquecer que há riscos sendo corridos aqui. A leveza narrativa esconde, com elegância, dilemas morais profundos: o uso de órfãos em regimes de trabalho disfarçado, a manipulação da esperança como moeda de troca e a dificuldade de manter a bondade num mundo que recompensa a astúcia e pune a ingenuidade. Esses temas surgem como sombras projetadas no fundo da história, nunca em primeiro plano, mas sempre presentes o suficiente para gerar incômodo, como convém a qualquer fábula honesta. “Wonka”, portanto, não foge da escuridão; apenas escolhe iluminá-la com cores doces e música envolvente, como quem diz que crescer também pode ser um ato de encantamento.

Ao final, resta a percepção de que o filme não busca apenas entreter ou reviver uma marca. Ele deseja algo mais nobre: reencantar o olhar. Há um tipo raro de cinema que compreende que a fantasia não é inimiga da realidade, mas uma forma refinada de revelá-la, e “Wonka” é uma amostra admirável desse potencial. Se emociona uma criança inquieta ao ponto de silenciá-la na poltrona, ou arranca uma lágrima furtiva de um adulto cético, é porque encontrou o tom exato entre o riso e a melancolia, entre o espetáculo e o silêncio. Não é pouco. No fundo, como o melhor chocolate, o filme derrete devagar, permanece na memória e nos faz acreditar, por um instante que seja, que a ternura ainda tem espaço no mundo.

Filme: Wonka
Diretor: Paul King
Ano: 2023
Gênero: Aventura/Comédia/Drama/Fantasia/Musical
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★