No princípio, Deus criou os livros

No princípio, Deus criou os livros

“No princípio, Deus criou os céus e a terra.” Em matéria de abertura, meus crentes leitores, a Bíblia continua imbatível: quem a escreveu tinha um poder de síntese magnífico — é o “Vim, vi, venci” dos inícios de livros.

Os incipit (plural sem variação, caro corretor) — como são chamados esses inícios de livros — dão muitas vezes o tom do livro. Por conta disso, os leitores inveterados competem ferozmente na escolha das melhores primeiras frases de livros — até a Revista Bula, onde tenho publicado as minhas mal traçadas, já postou listas de melhores começos de livros. Creio mesmo já ter lido que existe um jogo de adivinhação de autores a partir dos seus incipit — se non è vero, è ben trovato.

Charles Dickens: Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos… a primavera da esperança, o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós

Para que vós outros, incrédulos amigos, não digam que exagero, lembro que o israelense Amós Oz até escreveu um livro de ensaios sobre começos de livros e contos, “E a História Começa” — para ele, aliás, o início de uma obra de ficção é uma espécie de contrato entre o escritor e o leitor. Mais: o norte-americano Thomas C. Foster, crítico que ainda ama a literatura e não a crítica em si mesma, explica, em “Para Ler Romances Como um Especialista”, que a primeira página (muitas vezes o primeiro parágrafo ou mesmo apenas a primeira frase) pode nos dizer dezoito — dezoito! — coisas sobre o texto: estilo, tom, disposição, dicção, ponto de vista, presença narrativa, atitude narrativa em relação a personagens e acontecimentos, moldura do tempo, administração do tempo, lugar, motivo, tema, ironia (ou não), ritmo, andamento, expectativa do escritor e do próprio leitor, personagem e instruções de como ler o romance (novela, conto etc.). E você aí acreditando que um charuto é apenas um charuto?

Pois sou fã e colecionador de inícios de livros. Na internet pululam dezenas de textos sobre os melhores incipit; é um tema recorrente entre leitores, eu diria mesmo que é o tema-clichê-que-serve-para-exibir-cultura. Sendo recorrente, não me furto de acrescentar a minha incompetência ao assunto.

Há os inícios clássicos, justificadamente famosos e que aparecem em todas as listas. “Trate-me por Ishmael”, de Moby Dick, por exemplo, está entre os mais lembrados (na tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza — eu, em relação a esse começo, prefiro a tradução mais antiga de Péricles Eugênio da Silva Ramos para a Abril Cultural, “Chamai-me Ismael”; com a linguagem mais empolada, a frase evoca para mim mais facilmente a época do grande romance de Melville). Aliás, Luis Fernando Verissimo aproveitou-se dessa fama e escreveu um início muito engraçado para “O Jardim do Diabo”: “Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida”. Onde estais, Luis Fernando Verissimo de outrora?

Jane Austen: É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa

Além de “Moby Dick”, também são arroz de festa nessas listas alguns outros clássicos imbatíveis, como “Um Conto de Duas Cidades”, “Orgulho e Preconceito”, “Dom Quixote” e “Ana Kariênina”. Como costuma dizer um amigo, adiro à proposta: vamos a eles.

O grande Dickens iniciou “Um Conto de Duas Cidades” com um primeiro parágrafo que é citação obrigatória para lembranças de tempos memoráveis (tanto que Luiz Garcia o usou na orelha da primeira edição de “1968: O Ano Que Não terminou”, de Zuenir Ventura, para apresentá-lo, uma lembrança realmente feliz para aquele annus mirabilis:

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da razão, a idade da insensatez, a época da crença, a época da incredulidade, a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, todos iríamos direto ao Paraíso, todos iríamos direto no sentido oposto — em suma, a época era tão parecida com o presente que algumas das autoridades mais ruidosas insistiram que ela fosse recebida, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação.”

(Confesso: eu daria uns três dedos das mãos para ter escrito isso.)

Já Jane Austen, inglesinha que sabia tudo antes mesmo do nascimento de Freud, fez, em “Orgulho e Preconceito”, uma declaração que me persegue, entrando que vou na meia-idade: “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa”. (Falta-me a boa fortuna, e o fato de eu estar citando Jane Austen, imagino, depõe contra as minhas pretensões casadoiras.)

“Dom Quixote” — de nome completo “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha” — comete o prodígio de ter dois grandes começos, o prólogo e o início propriamente dito. O prólogo:

“Desocupado leitor: sem meu juramento podes crer que eu quisera que este livro, como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo e mais discreto que se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela a cada coisa engendra sua semelhante. E, assim, que poderá engendrar o estéril e mal-cultivado engenho meu, senão a história de um filho seco, mirrado, caprichoso e cheio de pensamentos vários e nunca imaginados por outro alguém, tal como quem foi engendrado num cárcere, onde todo o desconforto tem assento e onde todo o triste ruído faz sua morada?”

Fiódor Dostoiévski: Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado

O início verdadeiro, por assim dizer: “Num lugarejo em La Mancha, cujo nome ora me escapa, não há muito viveu um fidalgo desses com lança guardada, adaga antiga, rocim magro e cão bom caçador”. Viver num lugarejo da Espanha com um cão bom caçador já foi um dos meus projetos de vida; hoje eu apenas sofro calado o bullying de editores de revistas culturais.

Em “Anna Kariênina”, Tolstói foi filosófico: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A coisa é profunda, mas, pobre Tolstói, virou chavão literário — há quem tenha lido apenas essas palavras do calhamaço todo.

Outro russo, Dostoiévski, o nosso velho Dosta (sou seu velho conhecido), também foi genial em “Memórias do Subsolo”, um início, para mim muito do meu agrado: “Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado”. Do meu agrado porque tenho sido mau e desagradável.

Shakespeare não tem grandes frases no início de suas peças (há, claro, centenas de frases excepcionais nos seus textos; eu especialmente gosto de uma das falas de Dick em “Henrique VI, Segunda Parte”: “The first thing we do, let’s kill all the lawyers”); o início de “Macbeth”, com a famosa pergunta da Primeira Feiticeira, contudo, tem o seu je-ne-sais-quois que agrada: “Quando nós três nos encontraremos novamente: no trovão, no relâmpago ou na chuva?”. Tampouco o começo de “Ricardo III” é fraco: “E agora o inverno de nosso desgosto/Fez-se verão glorioso ao sol de York”.

Existe um famoso início escrito por Henry James que vem sendo citado nos tribunais há anos, parece que até mesmo, recentemente, pelo presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, John Roberts. São as primeiras palavras de “Pelos Olhos de Maisie”: “O litígio fora complicado a ponto de parecer interminável; mas com o recurso, a decisão da vara de família quanto à guarda da criança foi confirmada”. Opa, não, não, eu me engano. Vou ao Google e ele me informa que John Roberts iniciou um julgamento lembrando o interminável inventário de “Bleak House” (não sei se há tradução para o português), de Charles Dickens, citando um trecho do primeiro capítulo do livro:

“This scarecrow of a suit has, in course of time, become so complicated, that no man alive knows what it means. The parties to it understand it least; but it has been observed that no Chancery lawyers can talk about it for five minutes without coming to a total disagreement as to all the premises. Innumerable children have been born into the cause; innumerable young people have married into it; innumerable old people have died out of it.”

Vladimir Nabokov: Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta

(Apurei que há, sim, uma tradução da Nova Fronteira, mas como a tradução desse trecho é meio capenga, fica em inglês mesmo.)

Falei até aqui de gente mais antiga. Entre os autores modernos, o início absolutamente perfeito é o de “Lolita”, de Vladimir Nabokov: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta”. O que essas palavras evocam em vocês, pudicos e pudibundos leitores? Caluda, caluda, que a revista é séria.

Kafka é outro muito lembrado. Cito-o por, digamos, obrigação moral, já que sua literatura não me atrai (é a minha faceta Marcelo contra mundum: acho-o quase insuportável). Primeiro, claro, o início de “A Metamorfose”: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Mas há ainda “O Processo”: “Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal”. Tudo muito chato, mas também tudo muito famoso.

Esses são os incipit mais lembrados. Há outros tantos que me agradam, mas o editor, o famigerado Carlos Willian, costuma me dar broncas para que eu diminua os meus textos (Carlos diz que os 140 caracteres do Twitter são quase um “Ulisses”); obediente, eu então os deixo para a próxima “Carpe Diem”. Ademã.

Observação:

As traduções mencionadas no texto são, na ordem em que nele aparecem, as seguintes:

1) “Bíblia Sagrada”, Editora Ave-Maria, 2004.

2) Herman Melville, “Moby Dick”, tradução de Alexandre Barbosa de Souza e Irene Hirsch, Cosac Naify, 2008.

3) Herman Melville, “Moby Dick ou A Baleia”, tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Abril Cultural, 1972.

4) Charles Dickens, “Um Conto de Duas Cidades”, tradução de Débora Landsberg, Estação Liberdade, 2010.

5) Jane Austen, “Orgulho e Preconceito”, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira, 2006.

6) Miguel de Cervantes, “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha”, tradução de Sérgio Molin, Editora 34, 2002.

7) Liev Tolstói, “Anna Kariênina”, tradução de Rubens Figueiredo, Cosac Naify, 2005.

8) Fiódor Dostoiévski, “Memórias do Subsolo”, tradução de Boris Schnaiderman, Editora, 34, 2000.

9) Shakespeare, “Macbeth”, tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes, Abril Cultural, 1978.

10) Shakespeare, “Ricardo III; Henrique V”, tradução de Bárbara Heliodora, Nova Fronteira, 1993.

11) Henry James, “Pelos Olhos de Maisie”, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 1994.

12) Vladimir Nabokov, “Lolita”, tradução de Jorio Dauster, Companhia das Letras, 1994.

13) Franz Kafka, “A Metamorfose”, tradução de Modesto Carone, Companhia das Letras, versão Kindle.

14) Franz Kafka, “O Processo”, tradução Guimarães Editores, LeYa, SA, versão Kindle.