Na Netflix: ela perdeu o marido. Ele ganhou o coração dele. O que acontece depois vai te desmontar Divulgação / Netflix

Na Netflix: ela perdeu o marido. Ele ganhou o coração dele. O que acontece depois vai te desmontar

Solidão, trapaças do destino, inseguranças da meia-idade, amores insólitos e extasiantes: há um pouco de tudo isso em “Coração Delator”, que não tem nenhuma relação com o conto de Edgar Allan Poe (1809-1849), adaptado por Ted Parmelee (1912-1964) em 1953. Aqui, um ricaço bem-sucedido leva sua vida sem importar-se muito com tecnicismos como pobreza extrema, desemprego, déficit habitacional e insegurança alimentar. Em seu novo trabalho, o argentino Marcos Carnevale continua a tratar de assuntos delicados, ainda que menos herméticos que os esgrimidos em “Anita” (2009) e “Goyo” (2024) — e sem a mesma desenvoltura também. O diretor-roteirista parece querer persuadir a audiência de que o amor entre indivíduos de classes sociais distintas não é nenhum absurdo (no que tem razão); contudo, sua insistência acaba sendo um tanto fastidiosa.

Não há nada de inventivo ou estimulante em “Coração Delator”. Juan Manuel, um megaempresário da construção civil de Buenos Aires, parece satisfeito com sua vida de farras, viagens pelo mundo e namoros que nunca dão em casamento. Em Lanús, distrito pobre da região metropolitana da capital argentina, Pedro, Valeria e Tiago, o filho dos dois, espremem-se numa realidade bem diferente, lutando pela sobrevivência em subempregos e temendo pelo avanço das negociações que farão do bairro onde moram um complexo comercial. Como qualquer um pode supor sem ter de se esforçar muito, a construtora presidida por Juan Manuel é a principal interessada no terreno, mas ele nunca andara por aquele lado bem menos glamoroso dos domínios portenhos. As coincidências ficam mais indigestas à medida que Juan Manuel, que aparece visivelmente incomodado durante uma partida de tênis, sofre um ataque cardíaco enquanto desloca-se para mais a reunião que pode definir o futuro dos moradores de Lanús. Carnevale esclarece que seu protagonista já vinha se consultando com um médico e estava ciente de que a qualquer momento poderia necessitar de cuidados mais severos. Pois bem, ele é encaminhado para a fila do transplante e não espera quase nada por um novo coração: não muito longe de onde suas artérias acabaram colapsando, Pedro sofrera o grave acidente que o levou à morte cerebral quase imediata. 

Juan Manuel recebe o coração de Pedro, e então o diretor sua a camisa a fim de tornar crível que as vidas dos dois homens tenham enfim se cruzado, depois de terem combatido cada qual numa trincheira da guerra pela posse de Lanús. A estranheza aumenta quando o redivivo Juan Manuel apresenta uma vontade incontrolável de, agora, sim, visitar a área pela qual a companhia que lidera tanto lutou, para prestar solidariedade e ajudar a gente que ali vive, abandonando os ternos bem-cortados e a caminhonete de luxo para adotar botas, jeans puídos, camisas com as mangas arregaçadas e boné. O interesse pela viúva de seu benfeitor também não demora a florescer e, a partir desse ponto, a xaropada só engrossa. Vê-se que Benjamín Vicuña e Julieta Díaz (além de Facundo Espinosa numa participação curta no prólogo) fazem o que conseguem por seus papéis e pela história; lamentavelmente não existe muitas alternativas para um enredo todo permeado por clichês e soluções fáceis e artificiosas, que parece gritar por alguma verdade. “Coração Delator” é um raro péssimo momento do cinema da Argentina.

Filme: Coração Delator 
Diretor: Marcos Carnevale
Ano: 2025
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.