Adélia Prado não escreve para impressionar. Escreve para salvar — mesmo que sem alarde. Nascida em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935, ela chegou à literatura aos 40, como quem adentra um quarto silencioso depois da tempestade. Professora, mãe de cinco filhos, mulher católica e lírica sem véus, sua poesia sempre carregou uma urgência branda: não a de mostrar algo novo, mas de revelar o que já está ali, na mesa posta, no varal, nos joelhos ralados da alma.
É impossível ler Adélia e sair ileso. Seus versos costuram mística e cotidiano com uma naturalidade inquietante. Quando diz que “minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é”, ela desorganiza, com doçura, o altar do mérito burguês. Quando afirma que “mulher é desdobrável. Eu sou”, ela não apenas inaugura uma linhagem — ela rasga o pano da resignação feminina com uma voz firme e terna. Há uma lucidez em sua poesia que não se dobra ao cinismo. Uma sensibilidade que não se desculpa por ser profunda. Nem por ser alegre.
Sua fé não é apaziguadora, mas encarnada. Deus, em seus poemas, não mora no céu — mora no quintal. É presença e dúvida, ternura e assombro. O corpo, por sua vez, é exaltado sem luxúria gratuita, como templo de espanto e prazer legítimo. E o amor — ah, o amor — ela quer “feinho”, real, suado, com cheiro de roupa no varal e filhos chorando ao fundo. Um amor que não posa, mas permanece.
Ler Adélia é entrar num espaço onde o simples é sagrado, onde a mulher não precisa pedir desculpas por pensar, gozar ou rezar. Sua poesia é feita de carne, sal, louça suja, esperança e um lirismo que não se retira da vida para existir — mas se embrenha nela com coragem e delicadeza.
Aos que acham que poesia é coisa distante, cerebral ou adormecida, Adélia responde com panela no fogo, estrela na testa e um bilhete escrito à mão: “A vida é mais tempo alegre do que triste. Melhor é ser”.
CASAMENTO
Há mulheres que dizem:
“Se quiser pescar, pesque.
Mas que limpe os peixes”.
Eu não.
A qualquer hora da noite,
me levanto.
Ajudo a escamar,
abrir,
retalhar
e salgar.
É tão bom —
só a gente,
sozinhos na cozinha.
De vez em quando,
os cotovelos se esbarram.
Ele fala coisas como:
“Este foi difícil”.
“Prateou no ar,
dando rabanadas…”
E faz o gesto
com a mão.
O silêncio
de quando nos vimos
pela primeira vez
atravessa a cozinha
como um rio profundo.
Por fim,
os peixes na travessa.
Vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
AMOR FEINHO
Eu quero amor feinho.
Amor que não olha,
não tece teoria,
não filosofa.
Amor de fé.
Magro.
Doido por sexo.
Pai de filhos
quantos haja.
Tudo o que não fala,
faz.
Planta beijo
de três cores
ao redor da casa.
E saudade:
roxa, branca,
dobrada.
Amor feinho não envelhece.
Cuida do essencial.
O que brilha nos olhos
é o que é:
eu sou homem,
você é mulher.
Amor feinho
não tem ilusão.
O que ele tem
é esperança.
Eu quero um amor feinho.
COM LICENÇA POÉTICA
Quando nasci,
um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou:
“Vai carregar bandeira”.
Cargo pesado
pra mulher,
essa espécie ainda
envergonhada.
Aceito os subterfúgios
que me cabem,
sem mentir.
Não sou feia
que não possa casar.
Acho o Rio
uma beleza.
Ora sim, ora não,
creio em parto sem dor.
Mas o que sinto,
escrevo.
Cumpro a sina.
Inauguro linhagens,
fundo reinos.
Dor não é amargura.
Minha tristeza
não tem pedigree.
Mas minha vontade de alegria,
sua raiz
vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida
é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
MOMENTO
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram:
um bule azul
com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta
pela metade,
um latido,
e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram em seus lugares,
em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim.
Anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito.
É bom ter um corpo
pra rir
e sacudir a cabeça.
A vida é mais tempo alegre
do que triste.
Melhor é ser.
CABEÇA
Quando eu sofria dos nervos,
não passava
debaixo de fio elétrico.
Tinha medo de chuva,
de relâmpago,
nojo de certos bichos
que não falo
pra não ter que lavar a boca
com cinza.
Qualquer casca de fruta
eu apanhava.
Hoje, que sarei,
tenho uma vida e tanto.
Já seguro nos fios
com a chave desligada.
Lembrei de arrumar pra mim
esta capa de plástico.
Dia e noite não tiro.
Até durmo com ela.
Caso chova,
tenho trabalho nenhum.
Casca, mesmo sendo de manga,
eu não intervo.
Quem quiser,
que se cuide.
Abastam as placas de ATENÇÃO!
que eu escrevo
e ponho perto.
Um bispo,
quando tem zelo apostólico,
é uma coisa charmosa.
Não canso de explicar isso
pro pastor
da minha diocese.
Mas ele não entende.
Fica falando:
“Minha filha, minha filha…”
Ele pensa que é Woman’s Lib.
Pensa que a fé tá lá em cima,
e cá embaixo
é mau gosto só.
É ruim, é ruim.
Ninguém entende.
Gritava até parar,
quando eu sofria dos nervos.
NEUROLINGUÍSTICA
Quando ele me disse:
“Ô linda,
pareces uma rainha…”
Fui ao cúmice
do ápice —
mas segurei
meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade,
vinte de casta viuvez,
quero estar bem acordada,
caso ele fale
outra vez.
CORRIDINHO
O amor quer abraçar
e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro
no muro —
para o amor desistir.
O amor usa o correio.
O correio trapaceia.
A carta não chega.
O amor fica sem saber
se é ou não é.
O amor pega o cavalo.
Desembarca do trem.
Chega na porta,
cansado,
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra “açucena”,
pede água,
bebe café.
Dorme na sua presença.
Chupa bala de hortelã.
Tudo manha,
truque,
engenho:
é descuidar —
o amor te pega,
te come,
te molha todo.
Mas água,
o amor não é.
IMPRESSIONISTA
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo,
moramos numa casa —
como ele mesmo dizia:
“constantemente amanhecendo”.
ROÇA
No mesmo prato,
o menino,
o cachorro
e o gato.
Come a infância
do mundo.
ARTEFATO NIPÔNICO
A borboleta pousada —
ou é Deus,
ou é nada.