No sul da Itália, quase no ponto em que o continente se despede do mar para mergulhar no Mediterrâneo, existe um vilarejo onde o tempo parece hesitar. Chama-se Acciaroli. Fica na região da Campânia, à beira de um mar limpo, espremido entre colinas e oliveiras. É bonito, sim — como muitos outros. Mas o que atrai médicos, antropólogos, psicólogos e escritores ao lugar não é apenas a paisagem. É algo mais íntimo, mais quieto: os moradores de Acciaroli simplesmente não envelhecem como o resto do mundo.
Ou melhor: envelhecem, claro. Mas de outro jeito. Aos 90, ainda caminham sozinhos até o mercado. Aos 95, dançam nas festas locais. Aos 100 — e são muitos — contam histórias como se tivessem inventado o tempo. Não há pressa em morrer por ali. Nem medo.
A ciência tentou explicar. E de certo modo, conseguiu. Estudos conduzidos por universidades americanas e italianas apontaram uma combinação rara de fatores: a dieta mediterrânea, claro, rica em peixes, azeite, alecrim e vinho tinto. O clima ameno. O fato de quase ninguém fumar. A ausência de estresse urbano. Tudo isso conta. Mas talvez não explique.
Porque, ao contrário de outras “zonas azuis” do planeta — lugares com altíssima longevidade, como Okinawa ou Vilcabamba —, Acciaroli tem um diferencial quase invisível nos gráficos de pesquisa: seus habitantes leem, cantam, conversam, se reúnem, contam histórias. E fazem isso todos os dias, sem saber que estão salvando a própria vida.
Sim. Música, livros e vínculos sociais. Parece pouco. Mas talvez seja tudo.
Quem entra em Acciaroli pela primeira vez pode se enganar. Parece só uma vila italiana típica: roupas penduradas em varais, velhinhas varrendo a calçada, uma praça com homens jogando cartas sob a sombra de uma igreja. Mas basta ficar uns dias, ouvir com atenção, observar — e o ritmo revela outra coisa. Os dias têm uma cadência narrada. Cada tarde é uma cena. Cada história contada tem o peso de uma missa.
Há um bar que organiza noites de leitura em voz alta. Pessoas se revezam lendo trechos de Elena Ferrante, Dante, Primo Levi. Não é evento turístico — é hábito. Como se alimentar. Como respirar.
Há também música. Mas não no fone de ouvido. Não na solidão. Música ali é de partilha. É cantada ao redor da mesa. É ensinada aos netos, passada como receita de pão. O acordeão ainda ecoa. O tarantella ainda é dançado por gente de bengala. E ninguém parece achar isso exótico.
A longevidade em Acciaroli, dizem os estudiosos, está ligada a um tipo de vitalidade que não se mede com exames. É o que acontece quando alguém, mesmo com 98 anos, ainda é esperado em um coral. Ainda é ouvido com atenção quando conta um caso. Ainda é incluído no jantar coletivo, na roda de conversa, na troca de livros na biblioteca municipal.
Essa biblioteca, aliás, é mínima. Mas cheia de anotações. Há bilhetes entre as páginas, frases sublinhadas, marcações. Uma senhora de 101 anos lê sempre o mesmo romance de Elsa Morante — não porque esqueça o enredo, mas porque redescobre o tom. “A gente muda”, ela diz. “O livro também.”
A presença ativa dos velhos transforma a própria ideia de velhice. Ninguém ali “está velho”. Estão vivos — e isso é muito diferente. Não é uma juventude forçada, de procedimentos ou pílulas milagrosas. É uma velhice que tem sentido. Que tem função. E por isso resiste.
Um dos médicos que estudou a vila, Alan Maisel, declarou à BBC: “Em Acciaroli, as pessoas não morrem lentamente. Elas vivem até o fim.” E vivem mesmo.
Não há culto ao corpo. Não há jovens obcecados por juventude. Mas há respeito pelos ciclos. Há alegria nas pequenas coisas. Há tempo para parar. Para ouvir. Para ler. E, especialmente, para contar. O que se passa em Acciaroli talvez seja, na prática, uma comunidade que entendeu algo muito simples: nós não adoecemos só de vírus.
Adoecemos de silêncio, de isolamento, de inutilidade emocional.
Quando um idoso deixa de ser necessário, ele começa a desaparecer. Aos poucos. Quando deixa de ser ouvido, de ser parte de uma memória viva — ele encolhe. Por dentro.
Acciaroli não é mágica. Nem exceção absoluta. Há mortes. Há lutos. Mas há um tecido invisível que ampara. Uma rede feita de cultura vivida, não apenas consumida. A cultura ali não é um suplemento. É uma nutrição.
Talvez por isso, apesar de ser estudada por médicos, Acciaroli também mereça ser observada por educadores, escritores, urbanistas e filósofos. Porque, no fim, a pergunta que ela levanta é menos “como viver mais” — e mais “como viver de verdade, até o fim”.
E talvez seja esse o segredo. Não resistir à passagem do tempo. Mas ser necessário dentro dele. Mesmo que seja apenas para ensinar uma canção antiga. Ou emprestar um livro, pela centésima vez.
E sorrir ao dizer: “Esse aqui… você vai gostar.”