A clausura, quando imposta pelo acaso, expõe a alma com mais brutalidade do que qualquer interrogatório. “Dentro”, dirigido por Vasilis Katsoupis e protagonizado por um Willem Dafoe em estado de combustão interna, não conta uma história, desmantela uma existência. Um ladrão especializado em arte, ao invadir uma cobertura em Manhattan, é traído pelo sistema de segurança e transformado em prisioneiro da própria ambição. A premissa, que em mãos menos ousadas poderia render um suspense banal, aqui desintegra-se para dar lugar a uma experiência limítrofe: o cinema como confinamento psíquico, a arte como última fronteira entre o homem e o abismo.
Não há vilões nem heróis, tampouco redenção. O que há é o tempo, esse algoz silencioso, estendendo-se em dias indistintos enquanto o luxo da cobertura se transmuta em ruína, espelho exato da derrocada física e mental do protagonista. A estrutura do filme não caminha: deriva. E nesse desvio narrativo mora sua força mais incômoda. Katsoupis não entrega um arco, mas um labirinto onde o delírio artístico encontra abrigo nas frestas do desespero. Dafoe, em atuação que mais lembra um ritual de exorcismo do que uma performance convencional, habita cada minuto com a entrega de quem sabe que a verdade estética exige sacrifício.
A arte, aqui, não salva, mas impede o colapso total. Quando Nemo — o nome irônico de um homem sem lugar — rabisca as paredes, constrói esculturas com detritos ou dança em silêncio para ninguém, não há vaidade, apenas sobrevivência. Não se trata de estética, mas de pulsão. Nesse microcosmo sufocante, o gesto artístico assume papel vital: não como expressão, mas como respiração. A criação torna-se antídoto à loucura, mesmo quando flerta com ela.
Há algo profundamente cruel na beleza desse filme. A fotografia claustrofóbica, o uso intencional do silêncio como ruído e a rarefação de elementos externos instauram uma atmosfera onde até o absurdo, como a música pop que irrompe de uma geladeira, assume contornos de tragédia. Não há alívio cômico, apenas lapsos de humanidade que funcionam como punhaladas sutis: o pombo que insiste em visitar a janela, o calor insuportável, a água que falta. Cada elemento banal é convertido em símbolo do colapso civilizacional íntimo.
A ausência de outros personagens é menos uma escolha estilística e mais uma sentença. O confinamento de Nemo é absoluto, mas não vazio: ele é preenchido por visões, memórias corrompidas e uma urgência criativa que sangra pelas paredes. O apartamento se transforma em corpo e prisão, ateliê e sepultura, palco de um teatro sem público. A performance de Dafoe, no limite entre o real e o onírico, é uma aula sobre o que resta quando tudo, inclusive a esperança, já foi consumido.
“Dentro” não deseja agradar. Repele expectativas, desafia o espectador a suportar o tédio, a angústia, o silêncio que grita. Não é um filme sobre a arte como redenção, mas sobre a arte como último refúgio antes do colapso definitivo. Ao rejeitar a linearidade, a lógica e até mesmo o entretenimento, Katsoupis constrói uma provocação feroz: o que nos mantém humanos quando a linguagem, os vínculos e o futuro se evaporam?
Willem Dafoe, que há décadas transita entre personagens marginais e intensidades extremas, encontra aqui um papel que exige não apenas técnica, mas entrega espiritual. Sua atuação, desconcertante em cada gesto e olhar, não busca empatia, impõe presença. É ele, sozinho, contra a decomposição do tempo. E vence, não porque escapa, mas porque transforma a agonia em criação.
★★★★★★★★★★