Por mais paradoxal que possa soar, distopias se prestam a um alívio para espíritos menos conformados com o caos que reina no mundo desde o princípio dos tempos. A desordem fundamental que perpassa a vida do homem na Terra ainda não alcançou o estado de tétrico refinamento exibido com ostentação em produções de todos os gêneros, o que não quer dizer, definitivamente, que nossa situação seja confortável, ou mesmo admissível. Se até o presente momento não chegamos ao fundo do poço moral e econômico que nos aguarda e nos atrai, como a serpente que enfeitiça o camundongo e o devora sem ao menos ter de dar o bote, é só porque alguma força superior se compadece de nós, se penaliza dos infelizes já alijados do mínimo de que se necessita para uma existência suportável e permite que sigamos cada qual na sua agonia até que nos colha a morte, única solução para tantos daqueles há muito tomados pelo desalento e pelo desespero.
O fim do mundo continua a ser um fetiche avassalador, o que pode-se comprovar ao longo dos seis episódios de “O Eternauta”, a nova série da Netflix. As histórias em quadrinhos de ficção científica elaboradas pelo argentino Héctor Germán Oesterheld (1919-1977) e desenhadas por Francisco Solano López (1928-2011) — é mister não o confundir com o tirano presidente do Paraguai —, publicadas na revista “Hora Cero Semanal” entre 1957 e 1959, são adaptadas por Ariel Staltari de modo a preservar a aura caótica de um enredo que mistura cataclismos da natureza, desmandos dos poderosos e relacionamentos que se esfacelam. Coincidências aqui não cabem.
Staltari especula como seria se o gênero humano se flagrasse presa de uma conjuntura desastrosa que só apontasse para o fim iminente de tudo, sem nenhuma chance de defesa. Desde a eclosão da pandemia de covid-19 — mal com que, embora enfraquecido, teremos de conviver para sempre, deixando claro que não é exatamente mera paranoia temer inimigos ocultos —, a humanidade começou a sentir na carne qual pode ser seu melancólico desfecho caso não mude seus hábitos de uma vez por todas, antes que a oportunidade tenha cedido lugar à agonia de uma morte atroz e plangente. “O Eternauta” começa suave, mostrando amigos que se reúnem para uma noite de carteado na casa de um deles.
No caminho, manifestantes que reivindicam a volta do abastecimento de luz impedem a passagem de Juan Salvo, de Ricardo Darín, que leva Lucas Herbert, Polsky e Omar ao encontro de Alfredo Favalli para uma sequência de partidas de truco. Não muito tempo depois, os cinco notam que caem do céu flocos brancos, como se fosse neve, e as pessoas que deslocavam-se pela rua caem mortas, sem nenhuma explicação. Essa é a deixa para que o diretor Bruno Stagnaro explore mais a fundo um dos temas centrais das narrativas de Oesterheld e López, o progresso que mata, e o que parece água congelada é, na verdade, fuligem de amianto, uma substância altamente tóxica que não dá chance de defesa a quem tenha o azar de entrar em contato com ela.
A partir do quarto capítulo, Juan enfrenta Mãos e Gurbos, as criaturas que descem do infinito quando a suposta nevasca cessa, tendo de combater também organismos que lembram insetos gigantescos, que paralisam suas vítimas numa teia venenosa. Aos poucos, Staltari e Stagnaro estendem seu olhar para a política, abordagem fundamental ao se tomar o contexto no qual o trabalho de Oesterheld veio a público e suas entrelinhas. O autor desapareceu durante o governo do general Jorge Rafael Videla (1925-2013), o ditador da Argentina entre 1976 e 1981, e esse tom de pessimismo talvez seja a grande mensagem de “O Eternauta”, outro dos grandes momentos do audiovisual argentino.
Série: O Eternauta
Criação: Ariel Staltari
Direção: Bruno Stagnaro
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Ficção científica
Nota: 8/10