Nelson Rodrigues (1912-1980) talvez tivesse de rever seus conceitos ao falar sobre os burros, idiotas e afins. Em certa ocasião, o Anjo Pornográfico, arguto observador da natureza humana, cravou que invejava a burrice, porque era eterna. Depois, vaticinou que os idiotas, essa classe tão coesa quanto obstinada, teriam o mundo a seus pés, não porque capazes de coisa alguma, mas por serem a maioria. Estúpidos, néscios, boçais, tolos e ignorantes seguem mesmo compondo uma verdadeira força da natureza, gloriosa, imbatível, chegando ao topo da cadeia de comando pela via democrática, sem ter de dar um grito sequer. Políticos são um capítulo à parte na história da parvoíce mundial, desde Herodes (73 a.C. — 4 a.C.), Calígula (12-41) e Nero (37-68), passando por Neville Chamberlain (1869-1940), Boris Yeltsin (1931-2007) e Silvio Berlusconi (1936-2023), até chegar aos Bush, Donald Trump, Vladimir Putin, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Vana Rousseff e Jair Messias Bolsonaro. Cada um desses indivíduos simboliza um grupo bastante específico de lorpa, seja pelo desprezo à arte, à cultura, à diplomacia; pela total incapacidade de raciocínio lógico e comunicação articulada e inteligível; ou, o pior deles, a crença de que o poder supre-lhes a falta de leitura e os legitima a reescrever a história.
O saber já foi um ativo bastante valioso. Na Grécia Antiga, a razão, a prudência, o pensamento metódico, organizado, foram pilares defendidos por Platão (428 a.C — 348 a.C) e Aristóteles (384 a.C. — 322 a.C.) para que se atingisse uma vida ética e o desenvolvimento de uma sociedade justa. O Iluminismo europeu jogou luz na ideia de que a emancipação das gentes passava pelo conhecimento; que a literatura, a poesia, o teatro, as artes plásticas eram ferramentas para libertar o gênero humano dos grilhões da ignorância, do obscurantismo, da manipulação religiosa, da sub-reptícia má-fé dos poderosos. Ter intimidade com o que de melhor pode produzir o gênio do homem era estar mais próximo do sagrado (ou, vá lá, do transcendente) e de seus mistérios inefáveis, o que era privilégio de uma elite muita vez perversa, intolerante, vil, mas cônscia de seu dever de buscar a ascese, a iluminação possível neste plano — ou, ao menos, tentá-lo. O amor pela sabedoria era um compromisso com a verdade, um aceno à virtude, um genuíno desejo por evolução e progresso.
No póstumo “A Arte de ter Razão” (1864), Arthur Schopenhauer (1788-1860) ensina 38 estratagemas para vencer debates por meio da força da retórica e da argumentação persuasiva, ardilosa. Carisma, aquele atributo metafísico, divinal, de que uns poucos podem socorrer-se; capturar a atenção do interlocutor valendo-se da opinião majoritária acerca de um determinado tópico — o famoso jogar para a plateia —; perseverar numa explanação repleta de vácuos lógicos, fantasiosa, mas amparada pelo surrado “direito à opinião”; prescindir dos fatos, da análise, da fundamentação teórica de estudiosos por julgar que isso soa “elitista” e que perpetua a “mentalidade das classes dominantes”, do malvado “colonizador eurocentrista, branco e heterossexual” é o bastante para calar um rival e invalidar seu ponto de vista e seu trabalho. As redes sociais desempenham um papel central nesse triste fenômeno. Plataformas como Twitter, Instagram e TikTok priorizam conteúdos curtos, sensacionalistas e facilmente digeríveis. Nesses espaços, o tempo para desenvolver uma ideia complexa ou argumentar de maneira rigorosa é quase inexistente. Quem simplifica, polariza e grita, tem visibilidade. Quem argumenta, explica e contextualiza, tende a ser ignorado. Além disso, os algoritmos favorecem o engajamento — não o conteúdo de qualidade. Uma frase de efeito, um meme ou um ataque provocador gera mais curtidas e compartilhamentos do que uma explicação bem fundamentada. O efeito disso é devastador: cria-se um ambiente onde ser popular vale mais que ser intelectualmente honesto, e onde a burrice, contanto que seja engraçadinha, torna-se um objetivo a perseguir, com retorno financeiro líquido e certo.
Ser culto é um gesto político. É recusar-se a ir junto com a manada, mas, pelo contrário, é segurar pelos chifres o bicho feio da falta de reflexão, da ligeireza que só traz soluções equivocadas, da falsa alegria que entorpece para sufocar a realidade e perenizar misérias e crer que pensar é mesmo revolucionário. E que o charme da burrice e da inércia pode ter um custo alto demais.