Um passarinho novo no céu das pequenas coisas

Um passarinho novo no céu das pequenas coisas

E lá estavam todos eles. As formigas e os sapos, as cobras e os grilos, os ciscos e os pequenos universos que pulsam dentro das gotas d´água. Todas as criaturas pequenas que vivem debaixo das pedras e as borboletas e os pássaros, todos os pássaros trabalhando acima das árvores e brincando de andar no chão. As rãs e os rios, as folhas pesadas de orvalho caindo dos galhos. Ficaram todos ali, à espera: um anjo simples, sem tempo nem jeito anunciara a chegada de passarinho novo ao céu das pequenas coisas.

Para entrar num novo dia como quem ingressa na vida

Para entrar num novo dia como quem ingressa na vida

Olha ele aí de novo. Aconteceu outra vez. Dá sempre. Vira e mexe, um pensamento esdrúxulo arromba nossa porta e invade a casa. Sabe como é isso, né? Não é um ímpeto legítimo, um impulso de realização, uma vontade real. É só um desejo vago, um sonho distante flertando com a realidade. É uma ideia boba que chega e se ajeita. Cada um tem a sua. De repente, o advogado se cansa da dureza de seus processos de todo dia e imagina ele mesmo tocando violão na praça, vivendo de trocados e favores. Nunca aprendeu música, mas é capaz de se ver assim, encantando uma audiência atenta na correria da rua com uma canção leve e linda que os eleve por um instante da lida ingrata.

É hora de tirar os sentimentos das prateleiras

É hora de tirar os sentimentos das prateleiras

Imagine-se em um supermercado absolutamente vazio, porém com as prateleiras abarrotadas de produtos de diversas categorias. Nesta cena, apenas você desfila pelos corredores, deixando no ar a reverberação dos seus sapatos de couro. Aquele ruído, dentre tantos outros, que gostamos de ouvir num filme, enquanto devoramos pipocas no cinema. Já pensou nisso? Exercite suas fantasias então. Pense agora num filme sem barulhos, trilhas sonoras e outros fascinantes malabarismos das mixagens de áudio. Você estará assistindo a uma história agonizante, quase morta, que não nos toca, nem emociona de modo algum.

Guia rápido para tomar o poder e manter as amizades

Guia rápido para tomar o poder e manter as amizades

“Perdi um amigo”, ele disse. Não que o dito cujo tivesse se lascado e morrido. Não era nada isso. Não que ele estivesse nalgum paradeiro desconhecido, errando de maneira insana, a esmo, sem eira nem beira. Também não. Ele apenas supunha que alguém descartaria a sua amizade. Era isso. Ele não quis desdenhar da situação, dizer que não estava nem aí pra paçoca. Pois pertencia àquele tipo de gente cujos amigos podiam ser contados nos dedos que ainda assim sobrariam falanges. Daí o desassossego sincero, condoído, que sentia por causa do entrevero. “Nos dias de hoje, perder um amigo não é brinquedo, não é coisa que se comemore”— concluiu, mais frustrado que uma freira morta ao bater na porta do céu e descobrir que, na verdade, ele nunca existira.

Despedir-se é morrer um pouco. Vamos viver!

Despedir-se é morrer um pouco. Vamos viver!

Olha, alguém me disse que você vai embora. Que vai mudar de cidade, de país, de planeta e vem se despedir. Senti um gelo na barriga. Uma vontade de sair correndo, sabe? Um ímpeto de desaparecer e voltar depois, mais tarde, quando você já tiver partido. Não por nada. É que eu não gosto de despedidas. Não gosto, não. Não gosto mesmo desse negócio. Resisto a tudo. Jiló, muriçoca, bife duro, ar-condicionado quebrado, vizinho barulhento, internet lenta. Tudo! Menos despedida. Quem é que gosta? É, tem sempre um e outro que não se importam. Eu, não. Eu fujo, corro, me escondo. Assumo minha total e absoluta covardia. Eu sou um covarde de despedidas.