Se você é fã do clássico “Taxi Driver”, precisa assistir ao thriller produzido por Scorsese na Netflix Divulgação / Focus Features

Se você é fã do clássico “Taxi Driver”, precisa assistir ao thriller produzido por Scorsese na Netflix

Paul Schrader parece fascinado por personagens atormentados, especialmente aqueles cuja existência oscila entre o fracasso e a tentativa desesperada de encontrar redenção. Um exemplo icônico é Travis Bickle, o protagonista de “Taxi Driver” (1976), interpretado de forma visceral por Robert De Niro. Esse veterano da Guerra do Vietnã (1955-1975) encontra, na rotina de motorista de táxi, uma solução prática para sua insônia crônica, enquanto sua sanidade lentamente se deteriora. A criação de Bickle é fruto da mente intrincada de Schrader, cuja filmografia explora obsessivamente as profundezas do caos humano. Seu universo é povoado por figuras que caminham entre a desesperança e a autodestruição, muitas vezes marcadas por uma inquieta poesia interna.

Essa obsessão se reflete também em “The Card Counter” (2021), onde Schrader volta seu olhar para William Tell, um personagem igualmente disfuncional, interpretado com sutileza por Oscar Isaac. Ex-soldado do Exército dos Estados Unidos, Tell carrega o peso de um passado sombrio como torturador em Abu Ghraib, prisão que se tornou sinônimo de crueldade e violações. Embora tenha escapado das consequências legais mais severas, ele não consegue fugir das cicatrizes psicológicas e da inclinação à autodestruição. O jogo de pôquer, sua aparente forma de redenção, funciona mais como uma fuga temporária do peso esmagador de suas memórias.

A comparação entre Travis Bickle e William Tell revela como Schrader constrói personagens que são, ao mesmo tempo, fascinantes e perturbadores. Assim como Bickle conduz seu táxi pelas ruas sombrias de Nova York em busca de sentido, Tell vagueia pelos cassinos, apostando na ilusão de que pode controlar seu destino. Em ambos os casos, a busca por conexão humana é marcada por fracassos. Tell encontra dois aliados improváveis: La Linda (Tiffany Haddish), que traz um vislumbre de compaixão, e Cirk (Tye Sheridan), um jovem que personifica tanto a esperança quanto o perigo. No entanto, mesmo essas relações parecem condenadas desde o início, reforçando o isolamento que define os protagonistas de Schrader.

Como em “Taxi Driver”, onde a direção de Martin Scorsese e a atuação de De Niro transformaram a paranoia urbana em uma obra-prima do cinema, “The Card Counter” mergulha no abismo emocional de seu protagonista com a mesma intensidade. O trio central — Isaac, Sheridan e Haddish — oferece performances que capturam a fragilidade e a interdependência de vidas fragmentadas, ecoando uma partida de cartas interminável, onde cada jogada é carregada de implicações existenciais.

Schrader insere uma dimensão política em “The Card Counter”, explorando o impacto da violência institucionalizada na psique individual. Ao fazer isso, ele não apenas examina os traumas do passado, mas também questiona as estruturas que perpetuam essas dinâmicas. A justaposição entre o contexto histórico de Abu Ghraib e a narrativa pessoal de Tell cria um retrato devastador de um homem preso em um ciclo de culpa e autopunição. Mais do que uma simples história de redenção, o filme é um estudo sobre a incapacidade de escapar das sombras do passado.

Enquanto Travis Bickle permanece como um símbolo atemporal da alienação e da loucura, William Tell emerge como um reflexo contemporâneo dessa tradição, atualizado para um mundo que ainda luta com os legados de guerra e violência. Schrader demonstra, mais uma vez, sua habilidade singular de iluminar os cantos mais obscuros da alma humana, criando narrativas que são, ao mesmo tempo, profundamente desconfortáveis e estranhamente belas.

Filme: The Card Counter
Diretor: Paul Schrader
Ano: 2021
Gênero: Crime/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★