Cartas na Rua: Bukowski, Baudelaire e a modernidade esvaziada

Cartas na Rua: Bukowski, Baudelaire e a modernidade esvaziada

Charles Bukowski, em “Cartas na Rua”, transforma a banalidade da vida cotidiana em um quadro existencial de alienação e resistência, criando, por meio de seu alter ego Henry Chinaski, uma crítica pungente à sociedade contemporânea. Ao traçar paralelos entre Bukowski e Charles Baudelaire, uma questão central surge: quanto de Baudelaire há em Bukowski? A relação entre os dois poetas não está apenas no conteúdo, mas também nas maneiras distintas e, ao mesmo tempo, complementares com que cada um deles capta o esvaziamento existencial, a solidão e a banalização da vida moderna. Se, para Baudelaire, o homem moderno é o flâneur, aquele que vagueia pelas ruas da cidade em busca de sentido e experiência, para Bukowski, é o operário burocrático, sufocado por uma rotina desumanizante, que busca escapar pela via da autodestruição e da recusa ao conformismo.

Baudelaire, o grande poeta francês do século 19, em “As Flores do Mal”, estabeleceu o modelo do homem moderno: alienado, desencantado e confrontado com o vazio de uma vida urbana em constante transformação. O flâneur, figura emblemática analisada por Walter Benjamin em “Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo”, representa esse sujeito que se desloca pela cidade, absorvendo os fragmentos da vida moderna, mas sem jamais se envolver profundamente com eles. Chinaski, por outro lado, não tem a liberdade de vagar pelas ruas; ele está preso a um emprego sem sentido nos correios, onde a repetição mecânica das tarefas é símbolo do esvaziamento que marca a vida moderna sob o capitalismo. O que une essas figuras é a consciência de viver em uma época em que a experiência autêntica foi substituída por um tédio angustiante.

Bukowski
Cartas na Rua, de Charles Bukowski (L&PM, ‎192 páginas)

Essa visão é corroborada por um dos principais estudiosos da obra de Bukowski, Jean-François Duval, em “Bukowski et la Nature de la Souffrance”, de 2003. Duval descreve o autor norte-americano como alguém que “tente de sauver l’homme de l’étouffement moderne” (“tenta salvar o homem do sufocamento moderno”), mas que acaba por aceitar que a única forma de resistência é a recusa ativa em se submeter ao sistema. Como Baudelaire, que lamenta a perda da autenticidade nas experiências humanas no contexto da modernidade, Bukowski também rejeita as promessas vazias do capitalismo, mas o faz por meio de uma linguagem brutalmente honesta, sem adornos ou idealizações.

Se as experiências dos protagonistas de Baudelaire e Bukowski parecem ressoar, as diferenças entre os dois autores também são cruciais. Enquanto Baudelaire explora a modernidade com uma linguagem lírica e elevada, refletindo a complexidade e a profundidade de sentimentos como o tédio (ennui) e a melancolia, Bukowski opta por uma prosa simples, quase vulgar, que se aproxima do realismo sujo. Chinaski não vagueia pela cidade em busca de uma epifania existencial, como o flâneur; ele está preso a uma vida repetitiva e insuportável, que tenta anestesiar com álcool e sexo casual. Se Baudelaire é o poeta da contemplação, Bukowski é o cronista da sobrevivência crua e direta.

Essa dicotomia entre o estilo elevado de Baudelaire e a prosa seca de Bukowski, contudo, não anula as semelhanças na visão de mundo de ambos. A banalização da vida moderna, o sentimento de desconexão e a busca por algum sentido em meio ao caos capitalista são temas centrais para os dois. A diferença está na forma como cada um os aborda: Baudelaire, como um aristocrata da dor, examina o vazio com distanciamento estético, enquanto Bukowski, como um proletário da literatura, imerge nele, recusando qualquer tentativa de embelezamento ou transcendência.

Walter Benjamin, ao refletir sobre o flâneur, argumenta que essa figura é, ao mesmo tempo, um observador e uma vítima da modernidade. Chinaski, embora não seja um flâneur no sentido clássico, compartilha dessa dualidade. Ao mesmo tempo em que é um observador crítico de sua própria miséria e da banalidade do trabalho moderno, ele também é uma vítima desse sistema. A diferença está na passividade do flâneur em relação à cidade e à sua própria existência, enquanto Chinaski, mesmo sendo um derrotado, resiste. Ele não se submete à alienação sem lutar, ainda que sua luta seja, por vezes, autodestrutiva.

A crítica à sociedade capitalista em Bukowski e Baudelaire é outro ponto de contato fundamental. Ambos enxergam na modernidade uma força que corrói o ser humano, esvaziando-o de qualquer autenticidade ou profundidade emocional. O trabalho, no caso de Chinaski, é o principal símbolo desse esvaziamento. O emprego nos correios, com sua rotina mecânica e sufocante, transforma o protagonista em uma engrenagem de um sistema maior, sem que ele veja qualquer sentido em suas ações. Da mesma forma, Baudelaire, em poemas como “À une Passante” e “Spleen”, capta a sensação de isolamento e falta de sentido que marca a vida nas grandes cidades capitalistas.

Mas enquanto Baudelaire encontra, por vezes, uma beleza trágica no sofrimento e na alienação, Bukowski não oferece consolo estético. Em vez disso, sua prosa direta e sem adornos é uma recusa a qualquer tipo de embelezamento da miséria. Jean-François Duval observa que “Bukowski ne permet pas de sublimation; il met l’homme nu face à sa condition” (“Bukowski não permite a sublimação; ele coloca o homem nu diante de sua condição”). Chinaski, ao contrário de Baudelaire, não busca elevar-se acima de sua situação; ele a enfrenta de frente, com raiva e sarcasmo, sem ilusões.

O que une Bukowski e Baudelaire é uma percepção da modernidade como um tempo de esvaziamento e alienação, mas o que os separa é a maneira como cada um responde a essa realidade. Enquanto Baudelaire, com sua linguagem rica e sua figura do flâneur, tenta encontrar sentido na observação e na reflexão, Bukowski, com seu estilo cru e despojado, rejeita qualquer possibilidade de transcendência, abraçando a brutalidade da vida moderna com uma honestidade implacável.

“Cartas na Rua” oferece uma visão perturbadora, porém realista, da vida sob o capitalismo e, à sua maneira, é a linha através da qual Bukowski dialoga com Baudelaire. Ambos os autores, separados por um século e por estilos radicalmente diferentes, capturam a essência de um mundo em que o homem moderno, alienado e solitário, busca desesperadamente encontrar algum sentido em meio ao caos. E se Baudelaire é o poeta da modernidade, Bukowski é, sem dúvida, o cronista de sua degeneração final.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.