A reflexão sobre os frágeis pilares que sustentam a civilização surge como um tema recorrente em expressões artísticas, e o cinema é uma delas, trazendo à tona uma beleza latente, mesmo que oculta, em meio à existência humana. O longa “O Que Ficou Para Trás” se destaca por transformar essa premissa em algo concreto e menos abstrato, construindo uma narrativa onde as sutilezas da vida se entrelaçam com o desconhecido e o macabro.
Remi Weekes, em sua estreia na direção, proporciona uma lufada de ar fresco para a indústria, que rapidamente encontra no streaming uma nova fronteira a explorar. Esse movimento, quase natural, conecta o cinema a novos públicos, permitindo que obras mais diversificadas ganhem terreno e, por consequência, expandam seu alcance comercial. O terror, gênero que transcende o simples ato de assustar, encontra em Weekes uma abordagem cuidadosa, com um enredo que equilibra ameaças tangíveis e fantasiosas.
Ao combinar elementos clássicos do terror, como casas mal-assombradas e monstros, com um toque de sofisticação narrativa, o diretor mantém o suspense sem se limitar a sustos óbvios. Há claras homenagens ao estilo lovecraftiano, que misturam horror com ficção científica, distanciando-se das influências mais populares de escritores como Mia Couto, cujas narrativas mágicas bebem de outras fontes literárias. Assim, a trama equilibra o sobrenatural com um realismo angustiante, onde o verdadeiro terror reside na própria condição humana.
Couto, por sua vez, representa uma corrente literária singular, que une a tradição de Gabriel García Márquez com as influências regionais de Jorge Amado. Sua prosa, rica em imaginação e realidade, recria a história africana, expondo com clareza as cicatrizes deixadas pelo colonialismo e a opressão do apartheid, temas que reverberam fortemente no filme de Weekes, que retrata a jornada de uma família fugindo das consequências devastadoras da política e da guerra no Sudão do Sul.
O casal protagonista, Bol e Rial, busca refúgio no Reino Unido após a morte da filha durante a fuga, mas a adaptação ao novo ambiente é dolorosa. Isolados em uma comunidade que os rejeita e cercados pelas lembranças do passado, eles enfrentam uma luta interna para sobreviver em meio à miséria emocional. A moradia, que antes parecia um alívio, logo se torna um reflexo de seus tormentos, e o filme acompanha essa decadência com um toque de suspense psicológico, prendendo a audiência em uma espiral de tensão crescente.
A metáfora da casa que rejeita seus inquilinos ilustra a desintegração de suas vidas, em um paralelo com a degradação social e política que os forçou a emigrar. O preconceito, tanto externo quanto internalizado, mantém os protagonistas presos em uma condição de marginalidade, ecoando temas abordados por Jordan Peele em “Nós”. No entanto, enquanto Peele explora o desconforto de uma família negra rica, Weekes se concentra em uma luta pela sobrevivência, onde o fantasma da filha perdida persegue seus pais, simbolizando um passado que jamais os libertará.
Em suma, “O Que Ficou Para Trás” desafia o público a enfrentar questões filosóficas mais profundas, envoltas em um cenário de horror. A habilidade de Weekes em criar uma atmosfera sombria, apoiada por um domínio técnico que valoriza cada detalhe, provoca um misto de empatia e desconforto no espectador. Afinal, o filme nos lembra que, de certa forma, todos nós compartilhamos a responsabilidade pelos colapsos que permeiam nossa sociedade ao longo da história.
Filme: O Que Ficou Para Trás
Direção: Remi Weekes
Ano: 2020
Gênero: Terror/Thriller
Nota: 9/10