A violência dos conflitos bélicos frequentemente revive antigos anseios, refletidos nas figuras icônicas da luta pelos direitos civis dos afro-americanos. Essa é uma das narrativas centrais de Spike Lee em “Destacamento Blood” (2020), um épico ambicioso que não se intimida ao abordar temas sensíveis. A obra inicia com uma potente aparição de Muhammad Ali (1942-2016), uma das vozes mais proeminentes contra a Guerra do Vietnã (1955-1975).
Em um dos momentos icônicos do filme, Ali condena veementemente o envio de jovens americanos ao sudeste asiático para lutar em um conflito que, em sua essência, não os envolvia diretamente. Essa situação se agravava ainda mais para os soldados negros, que, após arriscarem suas vidas em combate, retornavam a um país que continuava a tratá-los com hostilidade e discriminação. A posição firme de Ali lhe custou caro: o lendário pugilista foi boicotado em várias competições, levando-o a enfrentar anos de ostracismo, perda financeira e desgaste de sua saúde, além de ser destituído de seu título de campeão mundial dos pesos-pesados.
Ao longo das mais de duas horas e meia de duração, “Destacamento Blood” culmina em uma referência ao legado de Martin Luther King Jr. (1929-1968), outro gigante da luta pelos direitos civis. Lee faz uma ligação poderosa com o poeta Langston Hughes (1901-1967), ecoando a fervorosa paixão de King ao clamar por uma verdadeira emancipação dos afro-americanos na sociedade estadunidense.
O filme relembra o discurso feito por King em 4 de abril de 1967, um ano exato antes de seu assassinato, no qual ele se posicionou contra a guerra e pela justiça racial, palavras que ainda ressoam com força nos dias atuais. Entre a abertura com Ali e o encerramento com King, o filme de Spike Lee tece uma narrativa rica em crítica social, misturando humor e seriedade, e aborda de forma incisiva a questão racial nos Estados Unidos, desde a abolição da escravatura em 1865 até os eventos contemporâneos, como o assassinato de George Floyd em 2020. A morte de Floyd, um afro-americano asfixiado em plena luz do dia por um policial branco, Derek Chauvin, que posteriormente foi condenado, ressalta a persistência da desigualdade racial e o desafio contínuo de confrontar o racismo sistêmico.
“Destacamento Blood” presta homenagem a clássicos do cinema de guerra, como “Apocalypse Now” (1979), dirigido por Francis Ford Coppola, mas mantém uma originalidade que só Spike Lee poderia proporcionar. O roteiro, coescrito por Lee, Kevin Willmott, Danny Bilson e Paul De Meo (1953-2018), revisita episódios sombrios da história dos Estados Unidos, acompanhando a busca por um tesouro de barras de ouro perdido nas selvas vietnamitas.
Quatro veteranos, todos negros e já envelhecidos, retornam ao Vietnã com o intuito de recuperar esse ouro, guiados por memórias e traumas da guerra. Mesmo com a morte de um dos membros do grupo, Stormin’ Norman, interpretado por Chadwick Boseman (1976-2020), sua presença espiritual continua a influenciar seus antigos companheiros de batalha.
Os protagonistas, vividos por Delroy Lindo, Clarke Peters, Isiah Whitlock Jr. e Norm Lewis, entregam performances intensas e convincentes, trazendo uma profundidade emocional que se traduz em uma autenticidade visceral nas telas.
O filme também se destaca por sua capacidade de fundir entretenimento com comentário social, usando elementos de sátira e humor para explorar temas complexos, como a futilidade da guerra e as consequências duradouras do racismo.
A personagem Hannah Hanói, uma radialista fictícia interpretada por Ngô Thanh Vân, simboliza a resistência cultural e a tentativa de conectar veteranos cansados com suas raízes através da música de Marvin Gaye (1939-1984), uma escolha que reforça a atmosfera dos anos 60 e 70, impregnada de protestos e lutas por direitos civis.
“Destacamento Blood” é um triunfo no catálogo de Spike Lee, que se destaca por sua habilidade em criar narrativas inesperadas e profundamente emocionantes sem cair em sentimentalismos excessivos. A ousadia e a autenticidade de Lee em lidar com temas tão complexos confirmam sua genialidade como cineasta e garantem seu lugar entre os contadores de histórias mais influentes de nosso tempo.
Filme: Destacamento Blood
Direção: Spike Lee
Ano: 2020
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 10/10