Já não se produzem mais personagens femininas como antes — e isso é um grande avanço. Antigamente, os papéis de heróis destemidos, dispostos a enfrentar inúmeros perigos para cumprir uma missão grandiosa, eram quase exclusivamente reservados aos homens. No entanto, nas últimas décadas, as mulheres também passaram a conquistar esse espaço, assumindo protagonismo em histórias que antes lhes eram negadas, e ampliando significativamente sua presença no imaginário popular.
Scarlett Johansson é um exemplo claro dessa transformação, consolidando-se como uma das atrizes mais versáteis e admiradas da atualidade. De produções com profundidade dramática, como “História de um Casamento” (2019), dirigido por Noah Baumbach, até grandes sucessos de bilheteria como “Viúva Negra” (2021), de Cate Shortland, Johansson demonstra uma habilidade incomum em transitar entre diferentes gêneros, sempre com uma interpretação acima da média. Em “Lucy” (2014), dirigido por Luc Besson, essa versatilidade se confirma, ao apresentar uma personagem que desafia as expectativas e elimina qualquer possibilidade de preconceito por parte do público, seja qual for o ponto de vista.
Luc Besson, diretor francês conhecido por seu estilo marcante, parece ter criado o papel de Lucy pensando desde o início em Johansson. A personagem é introduzida de maneira direta e impactante logo na cena de abertura, em uma troca instigante de diálogos com Richard, interpretado por Pilou Asbæk. Nesse breve prólogo, é estabelecido o conflito que irá guiar a trama até seu final, ao mesmo tempo sombrio e poético. A interação entre Lucy e Richard gira em torno de uma mala misteriosa, cujo conteúdo é desconhecido por todos, inclusive pelo antagonista Jang, interpretado por Choi Min-sik. Richard, que já teve problemas com a gangue liderada por Jang, tenta convencer Lucy a entregar a mala em seu lugar, prometendo-lhe uma parte da recompensa.
Após alguma resistência, Lucy acaba cedendo, embora sem muito entusiasmo, e aceita fazer o que lhe é pedido, recebendo quinhentos dólares como compensação. Ela então segue até o encontro de Jang, enquanto Besson constrói com maestria uma atmosfera de tensão crescente. O que se desenrola a partir desse momento é o primeiro de muitos eventos chocantes que marcam o filme, levando o público a mergulhar de cabeça no drama da protagonista. A crueldade com que Lucy é tratada desperta no espectador uma empatia imediata, ao mesmo tempo em que serve para revelar o lado mais implacável de sua personalidade. A partir desse ponto, o diretor transforma Lucy em uma figura poderosa e indomável, uma heroína — ou talvez uma anti-heroína — que transcende as limitações humanas.
O filme de Besson, além de um thriller filosófico de alta tecnologia, oferece um vislumbre de romance, ainda que discreto, entre Lucy e o policial Pierre del Rio, interpretado por Amr Waked, que a auxilia no segundo ato. O longa também aborda reflexões sobre a evolução da humanidade e os absurdos cometidos por nossa espécie, incluindo uma referência à figura arcaica de Lucy, o primeiro hominídeo conhecido, e que também era uma mulher. Assim como aquela Lucy, a personagem de Johansson é a primeira de sua espécie, mas sua perfeição acaba por isolá-la de um mundo imperfeito. Incapaz de encontrar um igual, sua trajetória a conduz inevitavelmente à destruição. Para sobreviver, Lucy precisaria esquecer grande parte do que viveu, mas o que a define é justamente sua memória infalível. E é essa capacidade que se revela, ao mesmo tempo, sua maior fraqueza.
Filme: Lucy
Direção: Luc Besson
Ano: 2014
Gêneros: Ação/Drama
Nota: 8/10