Filme brasileiro aplaudido de pé por 7 minutos no Festival de Gramado chega à Netflix Divulgação / Vitrine Filmes

Filme brasileiro aplaudido de pé por 7 minutos no Festival de Gramado chega à Netflix

É impossível não encontrar em Pacarrete, a personagem-título do filme de Allan Deberton, a Macabea de “A Hora da Estrela” (1977), imortalizada por Marcélia Cartaxo no longa de mesmo nome de Suzana Amaral (1932-2020), cujo lançamento remonta a um distante 1985 — até porque em “Pacarrete” é novamente Cartaxo quem encarna a solidão invencível de uma mulher perdida em anseios que não consegue sequer traduzir, tanto menos externar aos outros. 

A interpretação sensível da atriz confere à anti-heroína de Deberton a justa medida de independência e de arrojo, mas também de puerilidade e loucura que a protagonista exige-lhe. Passa-se os 97 minutos da história tentando-se saber afinal se Pacarrete, uma bailarina aposentada que volta de Fortaleza para Russas, no vale do Jaguaribe cearense, com o vago propósito de cuidar de Chiquinha, a irmã mais velha e cadeirante, é uma incompreendida, uma lunática, uma sonhadora ou tudo ao mesmo tempo, e algo mais. 

Com cuidado, o roteiro de Deberton, André Araújo e Samuel Brasileiro, inspirado numa história verídica, acresce elementos que ora pendem para uma hipótese, ora para a seguinte, da mesma forma que oscila a impressão que a audiência tem de Pacarrete, a margarida do sertão, num longo e excruciante desabrochar. 

Na introdução, Pacarrete dança com uma vassoura emulando um contagiante pas de deux, enquanto grita obscenidades para os moleques que insistem em andar de bicicleta na sua calçada. Encantadora com seu cabelo de cachos miúdos, bochechas cheias de rouge e um vestido floral e esvoaçante, parece que é ela quem toma conta de tudo, mas a exemplo do que se assiste pouco depois, Maria, a empregada vivida por Soia Lira, aparece dando duro na cozinha e na limpeza e, o principal, suportando os achaques da patroa, que no fundo reconhece a diligência da funcionária, ainda que não perca uma oportunidade de infernizá-la, como na sequência em que Pacarrete, mais transtornada que de costume, procura um par de sapatilhas que Maria chama de velhas, o suficiente para que a acusação de furto recaia sobre a doméstica.

 O diretor alivia a carga de antipatia que a personagem-título arrasta consigo numa bela cena em que, no mesmo cômodo, deitada na rede, Pacarrete atende ao pedido da irmã, na cama, levanta-se e estende-lhe a comadre, para que se alivie. Surgindo bissextamente no transcurso da narrativa, Zezita Matos compõe Chiquinha com a justa proporção de insegurança, medo e sensatez, prestando-se a uma espécie de superego da caçula, cujo único verdadeiro prazer é caminhar alguns passos e jogar conversa fora com Miguel, o dono da venda, casado, mas parece considerar ser de bom-tom  alimentar na vizinha um fio de esperança. Sempre monopolizando as atenções, João Miguel deixa à mostra uma faceta algo inexplorada de sua carreira, abdicando dos tipos rudes a que dá vida em “Mutum” (2007), dirigido por Sandra Kogut, ou “Estômago” (2007), levado à tela por Marcos Jorge, e investindo numa doçura que lhe cai bem.

Na virada do segundo para o terceiro ato, Deberton dá tintas de noir ao enredo, mencionando a grande ambição de Pacarrete: fazer parte do elenco de atrações pelo ducentésimo aniversário de Russas. Em passagens ainda mais carregadas de nonsense, a bailarina trata de sua eventual participação no show, expondo suas ideias sem notar (ou fingindo não notar) que Michele, a secretária de Cultura do município, já está resolvida a contratar apenas bandas de forró. 

O desempenho autorreferente de Samya De Lavor destoa muito do que “Pacarrete” vinha apresentando, embora não seja só ela a culpada. O segmento em que as duas brigam e a antimocinha de Cartaxo vai parar numa usina de açúcar desativada, recebida pelo poodle a que dá o nome de He-Man, é muito extenso e falto de substância, mormente por ensejar a metamorfose a qual quer tanto se submeter. Os méritos de “Pacarrete” decerto sobrepujam suas enormes deficiências, mas ninguém fica indiferente a esse belo filme, um musical da Era de Ouro de Hollywood rodado no Brasil profundo, sem música e pleno de cores e ritmo. 


Filme: Pacarrete
Direção: Allan Deberton
Ano: 2019
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.