Como eu dizia, brasileiros jecas adoram maldizer “Shakespeare Apaixonado” (1998), de John Madden, a que nunca assistiram (e nem irão), muito mais que exaltar os vários atributos de “Central do Brasil” — pelos motivos errados, diga-se. Para mim, a graça do filme de Walter Salles é acompanhar a remissão de Dora, a típica anti-heroína do mundo cão sintetizado pelo Rio de Janeiro, no recorte ainda mais trágico da antiga Estação Dom Pedro II, frequentada quase 600 mil passageiros por dia, cada qual com sua história.
Na Central do Brasil, nome oficial daquele salão branco por onde desfila gente comum, mais triste que alegre, sofrida, ultrajada pela necessidade de submeter-se a provações de toda sorte para voltar para casa ao fim de uma longa jornada de trabalho, Dora, a ex-professora aposentada de Fernanda Montenegro, tem uma banca na qual, num tempo distante sem aplicativos de mensagem, correio eletrônico, redes sociais e linhas telefônicas mais caras que um automóvel, escreve cartas para analfabetos.
O roteiro de Salles, Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro, consagrado como autor de “Avenida Brasil” (2012) década e meia depois, vai fundo na alma suja e encantadora da personagem, que nem se dá ao trabalho de postar as missivas. Algumas cenas à frente, estamos inclinados a perdoá-la: quando a noite cai, Dora então vai para casa, servir chá a seus mortos, numa vida sem cor que a fotografia de Walter Carvalho, cheia de âmbares-amarelos e marrons fúnebres, atira-nos ao rosto. Na conclusão de mais um expediente, um garoto cuja mãe é atropelada e morta por um ônibus passa a cercá-la. Pano longo.
O diretor coloca Josué na história como uma espécie de anjo torto no caminho de Dora. Não se pode dizer que Vinícius de Oliveira, que Salles conheceu engraxando sapatos no aeroporto Santos Dumont, a poucos quilômetros de onde se passa boa parte da ação de seu filme, seja um ator, tão natural é o que deixa transparecer. O Rio, esse imenso universo que cabe todinho num único beco malcheiroso da Lapa, dá sorte a muita gente, mas não a tipos como Dora e Josué, duas figuras malditas cada qual a seu modo, sempre humilhadas e nunca exaltadas, igualzinho à cidade, que expurga suas mazelas para a admiração do mundo.
Dora tenta se livrar de Josué despachando o garoto na casa de uma mulher que se diz assistente social, em troca do dinheiro necessário para uma televisão nova. Quando Irene, uma amiga, a alerta sobre a verdadeira atividade da fulana, volta lá e o resgata, sujeitando-se à mira de uma perigosa quadrilha internacional. Marília Pêra (1943-2015) responde pela comédia possível do enredo, e inconscientemente ou de propósito, Salles lhe oferece a grande ironia metalinguística de salvar Josué, ao contrário do fez com outra criança abandonada em “Pixote – A Lei do Mais Fraco” (1980), de Héctor Babenco (1946-2016). Aqui, a jornada de Dora e Josué ao sertão baiano é um só detalhe. “Central do Brasil” é muito mais, e é isso que agasta as madames.
Filme: Central do Brasil
Direção: Walter Salles
Ano: 1998
Gênero: Drama/Road movie
Nota: 10