O matrimônio, considerado uma das instituições mais contraditórias da história humana, carrega uma mistura de inveja e falência. Esta natureza paradoxal, que reflete tanto a racionalidade quanto a paixão humana, se intensifica com a chegada dos filhos. Nenhuma previsão confiável pode determinar a felicidade de um casal, e a presença de filhos torna este cenário ainda mais incerto. O humor mordaz de Machado de Assis (1839-1908) ilustra essa realidade com clareza ao afirmar que, enquanto o amor é uma criação divina, o casamento seria uma invenção diabólica, confundindo os sentimentos mais nobres do ser humano.
A visão cínica de Machado sobre o casamento e a prole, retratada em suas obras, reflete uma perspectiva trágica e realista da união conjugal, especialmente visível em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), onde ele lamenta não ter transmitido “o legado de nossa miséria” aos descendentes. Esta visão encontra eco no filme “Herança”, de Vaughn Stein, que explora a complexidade das relações familiares e os sacrifícios pessoais em nome de status e prestígio.
O filme de Stein, que examina o casamento e a criação dos filhos sob a ótica machadiana, revela surpresas que destacam as contradições humanas. A trama, escrita por Matthew Kennedy, habilmente evita clichês, conduzindo a narrativa a uma reviravolta que subverte as expectativas e justifica toda a história contada. A performance de Lily Collins, conhecida por papéis que desafiam estereótipos, adiciona profundidade ao filme. Em “Herança”, Collins inicia uma jornada rumo à maturidade artística, que culmina em atuações impressionantes como em “Sorte de Quem?” (2022), dirigida por seu marido, Charlie McDowell.
Lauren Elizabeth Monroe, a protagonista atormentada de “Herança”, lida com a morte do pai, Archer, de maneira digna e magnânima, mesmo ao descobrir segredos perturbadores através de flashbacks. A leitura do testamento, onde Lauren recebe uma quantia bem menor que seu irmão William, revela as verdadeiras intenções de Archer, que parece puni-la por sua carreira como promotora pública. A chave recebida por Lauren desvenda segredos que transformam completamente sua compreensão sobre o pai e sobre si mesma. A atuação de Simon Pegg como Morgan Warner intensifica esta descoberta, levando Lauren a confrontar verdades sombrias e a libertar-se de um passado opressor.
A história se desenrola com uma intensidade crescente, passando de hermética a hipnótica, à medida que Lauren enfrenta suas próprias sombras e enterra de vez o legado sombrio de sua família.
Filme: Herança
Direção: Vaughn Stein
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Mistério/Drama
Nota: 9/10