Advocacia criminal, Francesco Carnelutti e Josef K.

Advocacia criminal, Francesco Carnelutti e Josef K.

Não é nada incomum encontrar entre as pessoas uma abjeção mais ou menos explícita pela figura do advogado criminal. À primeira vista, trata-se de um sujeito com um senso moral extremamente flexível, capaz de defender os monstros mais infames em troca de honorários. Seguindo essa linha, a opinião pública confunde o advogado com o seu cliente (e para piorar, com o crime pelo qual este é acusado). É algo como: “se fulano defende um monstro, é porque ele também deve ser um”.

Um caso emblemático é o do advogado israelense, Yoram Sheftel. Nos anos oitenta, ele ousou assumir a defesa de John Demjanjuk, acusado de ser “Ivan, o terrível”, o guarda nazista responsável por muitos assassinatos no campo de concentração de Treblinka. Foi um escândalo para a sociedade israelense. “Como um advogado judeu pode defender um nazista?”, perguntavam os jornais. Sua própria mãe achou que ele fosse louco por pegar o caso. Em entrevista registrada no documentário “The Devil Next Door” (tem na Netflix), o dr. Sheftel desabafou: “Eu era o homem mais odiado do país, mais do que o meu cliente”.

Talvez grande parte dessa confusão venha da plurivocidade do verbo “defender”. Para o senso comum, quem defende “x” está de acordo com “x”. Ignora-se que, em sentido jurídico, o que se defende são os direitos da pessoa. Por exemplo, o direito a um julgamento justo, em conformidade com a legislação vigente. O advogado é alguém que “olha” pelo acusado, garantindo que o processo não ocorra de forma ilegal e/ou injusta. É por isso que a sua presença legitima um julgamento. O quão embaraçoso não seria defender a condenação de Eichmann, caso ela tivesse ocorrido sem a atuação enérgica de seu advogado, o dr. Robert Servatius?

Outro exemplo é o direito do réu à ampla defesa e ao contraditório, com a efetiva capacidade influenciar no resultado do julgamento. Algo que pode se traduzir como “o direito de ter a sua voz ouvida”. Aqui, pensamos, reside a nobreza desse ofício tão incompreendido. Afinal, existe tarefa mais civilizatória do que garantir a um acusado — e, portanto, um candidato às penas previstas na lei — que a sua versão dos fatos seja levada em consideração?

O leitor não precisa concordar com essa linha de argumentação. A beleza da advocacia criminal está no fato de que seus detratores se tornam seus maiores defensores no exato momento em que precisam dela. O sujeito que, de repente, recebe uma notificação de comparecimento na delegacia para prestar depoimento, ou que é surpreendido pela maldita visita de um Oficial de Justiça para informá-lo que existe uma denúncia, e que por isso deve apresentar sua defesa no prazo de dez dias, ou, no pior dos casos, que é imediatamente preso, em decorrência de um mandado já expedido, torna-se uma outra pessoa. Uma pessoa atormentada pela sombra do poder punitivo estatal, necessitada do mais urgente socorro por parte de um “ad vocatus” (aquele que foi chamado a socorrer).

Se antes o sujeito nutria alguma ideologia punitivista que o levava a caluniar a profissão de Cícero, Lincoln e Sobral Pinto, agora ela não só é esquecida como também repudiada. O advogado passa a significar para ele o sinônimo de uma esperança. Afinal, o Estado tem o monopólio da violência legítima. Vale dizer, não adianta chamar a polícia. O advogado é o único ser que pode ajudá-lo.

Nessa situação, portanto, ele espera que o causídico atue de maneira implacável, fazendo uso de todas as suas prerrogativas para defendê-lo. O antigo detrator torna-se o mais ferrenho defensor da classe. A sua vida depende disso.

E quem melhor explicou o que realmente constitui a advocacia — em especial, a advocacia criminal — foi o jurista italiano Francesco Carnelutti, no seu clássico “Misérias do Processo Penal” (“Le Miserie del Processo Penale”, 1957). Numa perspectiva profundamente cristã, o autor começa explicando que o encarcerado é um necessitado de amizade, e que isso, em essência, é o que se pede ao advogado:

“As pessoas não sabem, tampouco os juristas, que aquilo que se pede ao advogado é a dádiva da amizade antes de qualquer outra coisa. O nome mesmo de advogado soa como um grito de ajuda. ‘Advocatus, vocatus, ad’, chamado a socorrer. Também o médico é chamado a socorrer; mas só ao advogado se dá este nome. Quer dizer que há entre a prestação do médico e a do advogado uma diferença que, não voltada para o direito, é, todavia, descoberta pela rara intuição da linguagem. Advogado é aquele, ao qual se pede, em primeiro plano, a forma essencial de ajuda, que é propriamente a amizade”.

E continua o jurista, referindo-se agora aos acusados de praticarem crimes graves: “Precisa (o advogado) não tanto pensar nestes casos, quanto procurar colocar-se nas vestes destes desgraçados para compreender a sua pavorosa solidão e, como esta, a sua necessidade de companhia. Companheiro, de ‘cum pane’, é aquele que divide conosco o pão. O companheiro se coloca no mesmo plano daqueles aos quais faz companhia. A necessidade do cliente, especialmente do acusado, é isto: de alguém que se sente ao lado dele, sobre o último degrau da escada”.

Esses excertos certamente despertaram e despertarão reações de incredulidade em muitas pessoas. Carnelutti se propõe a explicar um fenômeno simples, embora controverso: o advogado — o verdadeiro advogado, não o sofista fantasiado de terno e gravata que se vê por aí — tem a função de, por meio de sua atuação, pedir, “no último degrau da escada”, ao lado do acusado, que a voz dele seja ouvida, que a sua versão dos fatos seja levada em consideração. E essa função representa um grande ato de amizade, um ato de amor no sentido cristão. Carnelutti nos ensina “o encarcerado é faminto e sedento de amor”.

É claro que essa proposição se aplica aos acusados em geral. Pensemos em Josef K., o protagonista de “O Processo” (1925). Kafka construiu um personagem que foi essencialmente privado desse amor. O pobre diabo só se deparou com a fria indiferença da burocracia estatal. Não vemos na figura de seu advogado, Herr Huld, um verdadeiro “ad vocatus”, pronto a socorrê-lo, mas apenas um velho acamado antiético que praticamente escraviza um dos seus clientes (Rudi Block). É tudo o que um advogado não deve ser. Simbolicamente, é a falência do amor e da amizade perante o “Estado-monstro”. Um advogado “carneluttiano” com certeza teria impedido o assassinato de Josef K. no final da obra.

A explicação cristã de Carnelutti ensina o que um verdadeiro advogado é. O “unheimliche” (estranhamento de uma situação familiar) kafkiano ensina o que a falta dele gera.