Quem vai tomar conta das mulheres quando ninguém estiver olhando

Quem vai tomar conta das mulheres quando ninguém estiver olhando

Escolada na dor, Maria da Piedade receava pela integridade dos filhos, em especial, das pequeninas. Havia uma escalada de violência na comunidade, uma região da cidade abandonada pelo poder público, onde nem mesmo a polícia entrava. Em comum acordo com José Donizete, o esposo há meses desempregado, acordaram que ele acompanharia as crianças, nas idas e vindas da escola, situada a meia hora de caminhada por ruas de terra esburacas e poeirentas.

A meninada seguia em fila indiana. Na frente, o primogênito de dez anos. Em seguida, a do meio, de oito. Por último, a rapa do tacho, a caçulinha de cinco. José Donizete seguia na retaguarda, cabisbaixo, empurrando a bicicleta de barra circular e pensando que carecia arrumar uma forma decente de ganhar dinheiro e de mudar de vida. Seguiram nessa toada, esperançosos em dias melhores, até que José Donizete conseguiu uma vaga de trabalho na construção civil. Ajudaria a erguer espigões na zona nobre da cidade.

Contente em saber do esposo bem colocado, Maria da Piedade não se importou em acumular outra tarefa às inúmeras que exercia em casa e passou acompanhar a prole, até que o filho mais velho somasse idade suficiente para proteger as irmãs das vilanias dos marmanjos maniados que permeavam as biroscas e os matagais das cercanias. Romperam primaveras e sucedeu que o primogênito, enfim, completasse doze anos. Numa rápida reunião familiar, o casal entendeu que já era chegada a hora de João, o mais velho, se responsabilizar pela escolta e pela segurança das irmãs para que ninguém bulisse com elas.

O rapazote já possuía vozerio potente para clamar por socorro e muque juvenil para trocar sopapos ou para correr em busca de recursos emergenciais dos adultos, caso o grupo fosse atacado. Mesmo contrariado por se tornar uma espécie de babá das irmãs, Joãozinho compreendia que não tinha outro jeito, que o perigo existia de fato, que havia reiterados relatos de meninas atacadas por homens adultos, que o pai estava na peleja pela subsistência da família e que a mãe não tinha mais como abrir mão dos afazeres domésticos para acompanhá-los na empreitada de se educar.

O tempo escorreu sem graves percalços. Um dia, Joãozinho caiu de cama. De acordo com os sintomas, os pais desconfiaram que o guri fora acometido pela doença do mosquito que infernizava as grandes cidades brasileiras, em especial, os bairros pobres onde o mato crescia descontrolado nos lotes baldios e o lixo tomava conta em pilhas e mais pilhas de desmazelo. Joãozinho não conseguia levantar o braço para pentear o cabelo, quem diria, acompanhar as irmãs e comparecer às aulas.

Maria da Piedade fez menção de voltar ao ofício de pajear as filhas pelo caminho insólito, mas, José Donizete ponderou que já era tempo das meninas aprenderem a se virar sozinhas. Já estavam crescidinhas e, afinal de contas, nunca tinha acontecido nada de ruim, nenhuma abordagem maliciosa de estranhos contra a irmandade. Maria da Piedade ficou ressabiada, dividida entre os cuidados com o filho moribundo e a segurança das pequeninas, presas fáceis para a lábia e para a pica de celerados de coração empedernido.

No frigir dos ovos, restou decidido que, na dúvida sobre como proceder, João faltaria às aulas para guardar repouso e, enquanto isso, Maria da Piedade faria companhia às filhas até o colégio. José Donizete consentiu com o aparente exagero da companheira e saiu pedalando para o trabalho. Joãozinho tomou comprimidos. O sol nem tinha nascido, Maria da Piedade puxou a fila das mulheres pelo breu das ruas.

Donizete estava na segunda colherada de marmita quando o celular vibrou no seu bolso. Uma voz furiosa do outro lado da linha queria saber por que ninguém da família tinha comparecido ao colégio para buscar as meninas. Sem o adjutório materno, Joãozinho seguia ardendo de febre. As irmãs choravam de fome e de medo na sala da diretoria. Nalgum ponto obscuro do caminho, Maria da Piedade tinha desaparecido. Não tardou muitos dias, a resposta veio do céu sob a forma de voos circulares e rasantes de urubus que convergiam na direção da mata ciliar, um lugar ermo e assombrado, onde as filhas gritavam e as mães não ouviam.