Maior aposta da Netflix para o Oscar 2024 acaba de estrear David Lee / Netflix

Maior aposta da Netflix para o Oscar 2024 acaba de estrear

Por trás de todo evento histórico existem homens, e por trás de todo homem existem idiossincrasias, paixões, sonhos, medos. A célebre marcha em defesa dos direitos dos cidadãos afro-americanos em Washington, em 1963, é apenas o ponto de onde George C. Wolfe sai em busca de respostas para questões ainda hoje incomodamente irresolutas na América da terceira década do século 21, e “Rustin” esfrega isso na cara de quem assiste.

A saga de Bayard Rustin (1912-1987), um ativista negro nascido na Pensilvânia do começo do século 20, vai tornando-se mais e mais dramática à medida que o diretor adiciona um elemento bastante delicado ao filme, declaradamente hagiográfico em sua ânsia por fazer justiça à memória de Rustin, um dos homens mais corajosos de seu tempo ao não se permitir dominar pela patrulha do que os outros pudessem achar certo para sua vida — sua vida íntima, sobretudo.

Homossexual assumido, mas discreto, Rustin pagou um preço alto demais por ser quem era, experimentando, claro, o gosto amargo da segregação intracomunitária, de segmentos mais conservadores no movimento negro que achavam, não sem alguma razão, que essa era uma pauta que carecia de sua própria luta — o que terminou acontecendo mesmo, a partir de 28 de junho de 1969, quando de uma batida policial que descaiu para um violento confronto entre os agentes e os frequentadores do Stonewall Inn, o grande ponto de socialização de homens gays de Nova York, no Greenwich Village. A audácia de Rustin de se enxergar duplamente oprimido, duplamente visado, duplamente na mira, é um ativo precioso do filme, que Wolfe faz sobressair com a ajuda de seu protagonista.

Na introdução, os roteiristas Dustin Lance Black e Julian Breece recriam cenas emblemáticas da perseguição aos negros nos Estados Unidos de sessenta anos atrás, a exemplo dos ultrajes a Anne Moody (1940-2015), impassível enquanto recebia um banho de comida num restaurante em 1963; o cerco a Elizabeth Eckford, hostilizada a caminho da escola, em 1957; e a mais famosa, a escolta a Ruby Bridges, uma menina de seis anos, também dirigindo-se à aula depois da Corte da Louisiana homologar sua solicitação para frequentar instituições de ensino, em 1960. A luta dessas pessoas por igualdade, respaldada pelo poder público, mantém sua importância, mas Black e Breece mostram ao longo de todo o filme a quase inutilidade dos congressistas e dos operadores da lei quanto a materializar um horizonte de transformação cívica para os negros, cabendo mesmo à sociedade organizada e ao Executivo, nessa ordem, malgrado o apoio do presidente John F. Kennedy (1917-1963) nunca seja mencionado.

Esse é justamente o gancho para fazer com que a figura do personagem-título emerja. O carisma de Colman Domingo, já verificado em proporções bem mais modestas em “A Voz Suprema do Blues” (2020), também de Wolfe, casa à perfeição com a grandeza mitológica do papel, e o ator agarra-se a essa figura deliciosamente controversa como se o filme dependesse disso — e na verdade depende mesmo. O diretor mistura com certa displicência fatos históricos, como a amizade de Rustin com o reverendo batista Martin Luther King Jr. (1929-1968), de Aml Ameen, ao romance ficcional com Elias Taylor, vivido com tocante entrega por Johnny Ramey. Essa relação, cheia de potenciais danos à imagem dos dois — além de pastor, Taylor era uma liderança em ascensão da NAACP, ainda hoje uma voz de peso na defesa dos interesses dos afrodescendentes na América —, é o eixo em torno do qual o longa se movimenta, embora de modo bastante sutil, quase calculado, sem querer empurrar nenhuma lição pela goela da audiência, e de todo modo, sem concessões ao propósito para o qual Rustin dedicou boa parte de sua vida.

Acertadamente, a homossexualidade do protagonista é somente um prisma de sua personalidade multidimensional, o que explica a adesão de cerca de 250 mil pessoas à Marcha de Washington, até hoje o maior protesto pacífico da História. No fundo, Bayard Rustin sabia que cada jornada tem um tempo certo para começar. Por isso ainda nos lembramos dele.


Filme: Rustin
Direção: George C. Wolfe
Ano: 2023
Gêneros: Biografia/Drama/História
Nota: 9/10