Se para 99,9% da humanidade escalar uma montanha não soa como o jeito mais divertido parar se passar o tempo, o décimo restante o faz com a energia e a convicção que tratam de embasbacar o mundo inteiro, tanto mais hoje, era em que imagens se transformaram num meio de se arrebanhar uma legião de fãs, que de bom grado sorvem essa influência no desejo oculto de um dia, quem sabe, ter a mesma coragem, o mesmo vigor, a mesma glória.
Justamente a honra por trás de uma façanha reservada a um grupo tão restrito é uma das engrenagens que movem “Corrida para o Topo”, o ótimo documentário em que os diretores Götz Werner e Nicholas de Taranto deslindam os bastidores de uma competição do homem contra seus limites, sui generis: solitária, mas impossível de ser levada a termo sem o reforço de alguém com ambição, senso de oportunidade e instinto de sobrevivência equivalentes.
Percebe-se logo no início a sutil rivalidade que marca as carreiras dos suíços Ueli Steck (1976-2017) e Dani Arnold, dois dos alpinistas mais celebrados do começo do século, capazes de hipnotizar plateias ao redor do mundo com sua oratória e, claro, a paixão com que falavam de suas conquistas na terra natal, cuja topografia é um prato cheio para quem aprecia a estranhíssima arte de desafiar a gravidade sem sair do chão. Quando esgotam o caráter festivo da narrativa, Werner e Taranto viram a chave e colocam o dedo numa ferida ainda por cicatrizar na trajetória de seus biografados, personagens centrais de uma controvérsia que atravessa uma geração.
A cuidadosa edição mistura o plano geral de uma cadeia de picos gigantescos às imagens de uma câmera portátil no capacete do homem agarrado a um paredão de rocha. Escalar é uma implacável luta contra o relógio, isto é, abreviar um segundo num tempo anterior, por mais insignificante que pareça aos simples mortais, deve ser publicizada. Esse aspecto de constante provocação para consigo próprio, até de certa fanfarronice desabrida, é o recurso mais básico de que Steck e Arnold lançam mão para concluir suas provas, e os resultados são simplesmente admiráveis.
Conhecido pela agilidade, Steck — por quem os diretores manifestam uma preferência nada discreta — está sempre dois ou três metros acima do restante dos homens e quatro ou cinco casas à frente de seus pares, matutando em como atingir suas metas no menor tempo possível, sem desperdício de força e usando os recursos naturais e mesmo as intempéries da natureza a seu favor. Quanto antes consiga vencer a montanha, melhor, e nunca passa por sua cabeça ficar dias aprisionado num mesmo lugar. Para essa máquina de bater recordes, escalar não é uma aventura, mas um esporte de alta performance, que demanda precisão, cálculo e, por óbvio, o gosto pelo movimento.
No meio do segundo ato, o filme detalha os planos de Steck e Arnold: subir as três formações mais elevadas dos Alpes suíços, o
Matterhorn, com 4.478 metros; as Grandes Jorasses, que contam 4.208 metros; e o Eiger, de singelos 3.967 metros. Os diretores aprofundam-se no processo de estudo das três montanhas, distribuído ao longo de quatro anos. Eles vencem a face norte do Matterhorn em uma hora e 46 minutos, cravando um novo recorde mundial.
Steck, desta vez sem o colega, segue para as Grandes Jorasses, a cujo topo chega em duas horas e quatro minutos, ultrapassando a marca anterior, cravando seu segundo feito inédito e dando margem a especulações de fraude, uma vez que ninguém o acompanhava para dar fé da proeza. Nesse momento, o documentário assume um tom de investigação jornalística, dotado de outra natureza de adrenalina. A polêmica nunca se esgotou, e talvez continue para sempre: Ueli Steck morreu em 30 de abril de 2017, tentando subir o Everest.
Filme: Corrida para o Topo
Direção: Götz Werner e Nicholas de Taranto
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Biografia
Nota: 9/10