Entrevista póstuma com Nelson Rodrigues Foto / Arquivo Público de São Paulo

Entrevista póstuma com Nelson Rodrigues

Nelson Falcão Rodrigues foi um dos maiores escritores e dramaturgos da história do Brasil. Nasceu em Recife em 1912 e mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1916, onde retratou como ninguém as “sombras interiores” das famílias da classe média carioca. Ao longo de sua carreira, escreveu dezessete peças (várias das quais viraram filmes), além de romances de folhetim e um sem-número de contos e crônicas. Morreu em 1980. Depois de muitas tentativas — e não sem a ajuda de alguns contatos do além —, consegui enfim arranjar uma entrevista com o mítico escritor. A seguir, relato todo o episódio em detalhes.

Chego no Cemitério de São João Batista às nove da manhã. Caminho até à quadra 43, perpétuo 18340-A. Não há ninguém. Eu me aproximo da lápide e chamo pelo dramaturgo: “Nelson?! Você está aí? Sou eu, o rapaz da entrevista!”. De imediato, nada acontece. Uns cinco minutos depois, o tampo do túmulo de mármore projeta-se violentamente para fora, e o autor emerge da terra, triunfante. Ele me dá um aperto de mão firme, daqueles do século passado. Não diz uma palavra, apenas faz um sinal para que eu o siga. Obedeço.

Caminhamos até Copacabana embaixo de um sol de quarenta graus. Nelson não parece dar por isso. De repente, para numa esquina entre a rua Bolívar e a Domingos Ferreira, em frente a um bar. Seu rosto adquire um ar de decepção.

O que foi?, pergunto.

Aqui era o Ninos, o meu restaurante favorito.

Pelo jeito fechou. Tem algum outro lugar que gostaria de ir?

Pode ser o Antonio’s ou a Cantina Sorrento.

Esses lugares não existem mais, Nelson.

Ele não diz nada. Fica meio cabisbaixo. Proponho entrarmos no bar mesmo, é o que tem. Resignado, ele aceita. Eu peço um café; Nelson, um copo de leite (é por causa da sua úlcera, me explica). A entrevista finalmente começa.


Em primeiro lugar, agradeço por me conceder esta entrevista. Como se sente tendo retornado do além?

Nelson — Não há de que. Veja, cada um de nós está sempre a um milímetro da depressão, a um milímetro da euforia.

Você me mandou segui-lo e agora estamos em Copacabana. Gosta do bairro?

Nelson — Gosto, morei aqui. Copacabana vive, por semana, sete domingos.

Que bom que você teve a iniciativa de me trazer aqui. Não sabia aonde levá-lo, pensei até mesmo em sugerir uma viagem para São Paulo. Você gostaria?

Nelson — Não. A pior forma de solidão é a companhia de um paulista.

Imagino que você tenha cruzado lá no além com muitas personalidades interessantes. Chegou a conhecer Dostoiévski? Sei que é um grande admirador.

Nelson — Pode-se viver para um único livro de Dostoiévski. Sim, nós nos conhecemos e conversamos. Conheci também Shakespeare, Napoleão, Cleópatra… Mas, escuta: as grandes convivências estão a um milímetro do tédio.

Desculpe, mas não consigo conter a minha curiosidade. Existe inferno?

Nelson — O inferno é o sexo sem amor.

Alguns críticos afirmam que se você tivesse escrito o que escreveu nos dias de hoje, seria cancelado, isto é, rechaçado pelo público. O que acha disso?

Nelson — A verdadeira apoteose é a vaia. A glória está mais no insulto do que no elogio.

O que pode me dizer sobre o seu velório?

Nelson — O morto começa a ser esquecido em pleno velório.

Você adquiriu a reputação de sempre explorar temas polêmicos em suas peças. O que pensa a respeito?

Nelson — O que nós chamamos de reputação é a soma de palavrões que inspiramos através dos tempos.

Em vida, você experimentou o sucesso, viu suas peças virarem filmes. Qual é a sensação?

Nelson — O autor não tem nada a ver com o sucesso. Quem o faz é o público.

Vendo a sua obra em retrospectiva, tem alguma autocrítica?

Nelson — Não. Cada autocrítica tem a imodéstia de um necrológio redigido pelo próprio defunto.

Acho que vou pedir ao garçom uma cerveja. Você aceita?

Nelson — O cigarro que se fuma, ou a cerveja que se bebe, o que exprime senão a secreta vontade da autodestruição?

É um bom ponto. Nelson, o que pode dizer aos jovens que estão lendo esta entrevista? Algum conselho?

Nelson — O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência. Aos 18 anos o homem não sabe nem como se diz bom-dia a uma mulher. Todo homem deveria nascer com 30 anos feitos.

E aos leitores em geral? Alguma mensagem que queira deixar a eles?

Nelson — Vivam. Não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo vício de viver, pelo desespero de viver.

Nas suas crônicas, você criticava o fato dos brasileiros se desacreditarem. Ainda pensa assim?

Nelson —  O brasileiro continua sendo aquele narciso às avessas que cospe na própria imagem. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas.

No ano passado, tivemos eleições. Vi muitas pessoas, da direita e da esquerda, rememorando a sua famosa frase: “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”. O que acha disso?

Nelson — Todos os autores têm suas três ou quatro frases bem-sucedidas. São frases que adquirem vida própria e que duram mais do que o autor, mais do que o estilo do autor, mais do que as obras completas do autor.

Desde a sua época, há políticos e cidadãos que se autointitulam “homens de bem”. O que pensa a respeito?

Nelson — O homem de bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu.

Você escreveu muito sobre casamentos que acabam desmoronando. Por que isso acontece?

Nelson — Falta de amor. Num casal, pior do que o ódio, é a falta de amor.

E a beleza? Num relacionamento, a beleza importa?

Nelson — A beleza interessa nos primeiros 15 dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual.

Vou fazer perguntas mais filosóficas. O que pensa sobre o amor?

Nelson — Enquanto o homem não amar para sempre, continuaremos pré-históricos. E só acredito em amor que chora.

E sobre a bondade?

Nelson — Temos uma bondade frívola, distraída, relapsa. Fazendo as contas, somos bons, por dia, de quinze a vinte minutos.

Sobre a alma…?

Nelson — Sem alma não se chupa nem um Chicabom.

E sobre a mentira? O que pode me dizer?

Nelson — Mentimos muito, não há longa conversa sem um belo repertório de mentiras.

E isso inclui as entrevistas?

Nelson — Nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.

Certo. E sobre os fracassos, o que pensa deles?

Nelson — Só acreditamos e só aceitamos, sem restrições, os fracassos. É verdade, a derrota é o nosso poderoso excitante, o nosso eficacíssimo afrodisíaco vital.

E sobre a morte?

Nelson — Há um “charme” na morte, há um apelo que ninguém resiste. Entre um casamento, um batizado ou um enterro, qualquer um prefere o velório, embora este último não tenha os guaranás e os salgadinhos dos dois primeiros. E diante de um caixão, o sujeito faz sempre esta reflexão egoísta e estimulante: “Ainda bem que eu não sou o defunto”.

Você escreveu muito sobre o canalha. Alguma consideração sobre essa figura?

Nelson — O canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável.

Agora, tenho algo para te mostrar. Está vendo esta tela na minha mão? É um telefone portátil. Ele faz muitas coisas além de ligações. E esta coisa que aparece na tela é uma rede social, um lugar em que as pessoas podem compartilhar fotos, vídeos, textos, conversar… Dê uma olhada e me diga o que acha.

Nelson — Há sujeitos que nascem, envelhecem e morrem sem ter jamais ousado um raciocínio próprio.

Vou pegar um problema da sua época que continua atual. Em 1968, foi feito um projeto de metrô para o Rio de Janeiro. Até hoje a parte do projeto que ligaria o Rio a Niterói continua só no papel. O que acha desse descaso?

Nelson — O Brasil é um adiamento infinito e o brasileiro é uma ociosidade compacta. O Brasil está por fazer, e repito: – todos os dias o Brasil pede que alguém o faça.

Diga-me com sinceridade, o que está achando desta entrevista?

Nelson — Eu gosto da ideia. Já fiz muito disso. Um dia ocorreu-me a ideia das “entrevistas imaginárias”. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto. A única entrevista verdadeira é a imaginária.

Uma pergunta final: vendo a sua vida do começo ao fim, tem algo que queira dizer?

Nelson — Fui um menino que viu o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino e morri menino. E o buraco da fechadura foi, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sempre fui um anjo pornográfico.

(Pausa)

Aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo.

Terminada a entrevista, acompanhei o dramaturgo até o Cemitério de São João Batista. Felizmente, consegui resistir à tentação de fazê-lo autografar alguns exemplares de “A Vida Como Ela É…”. Nós nos despedimos e ele retornou ao túmulo majestosamente. Ajudei a fechar o tampo de mármore.

ATENÇÃO: com pouquíssimas exceções, as respostas do Nelson que aqui reproduzo foram realmente ditas (ou escritas) por ele em vida. Salvo leves alterações para adequá-las ao formato proposto, tentei manter suas frases tal como ele as escreveu. Todas elas podem ser encontradas nos livros: “Frases Inesquecíveis de Nelson Rodrigues: Só os Profetas Enxergam o Óbvio” (André Seffrin, 2020) e “O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues” (Ruy Castro, 1992).