O filme mais divertido e bem avaliado pela crítica em 2023 acabou de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

O filme mais divertido e bem avaliado pela crítica em 2023 acabou de estrear na Netflix

Sobram mistérios sobre a ditadura de Augusto Pinochet Ugarte (1915-2006) no Chile entre 11 de setembro de 1973, quando derrubou Salvador Allende (1908-1973), o presidente eleito pela vontade popular, num golpe de Estado, e 11 de março de 1990, momento em que o povo se faz respeitar novamente e a massa exaurida, sem emprego, famélica, sem perspectivas de nada consegue, com um referendo, manifestar seu repúdio e ter de volta sua soberania sobre o poder. Em seu décimo longa, o chileno Pablo Larraín dedica-se a esmiuçar um dos períodos mais sombrios na história de seu país.

Os dezessete anos de reinado de Pinochet à frente de uma das ditaduras mais sangrentas da América do Sul vêm à luz, de forma muito idiossincrásica no vesanamente divertido “O Conde”, uma sátira aos anos Pinochet e uma homenagem ao povo do Chile, sobretudo àqueles que escaparam à fome de carne humana e ao impulso animalesco do ditador por sangue, que, à boca miúda, exigia ser chamado pelo cognome que serve de título ao drama gótico de Larraín. É justamente esse o tropo que sustenta toda a narrativa, desde o começo algo enigmático até o epílogo feito de cinismo e da revolta surda que homens comuns sentem diante das iniquidades do mundo, tanto mais opressivas num subcontinente que avança uma casa e volta três, sem que se esqueça do segundo ato, ocasião em que o roteiro do diretor, escrito em parceria com Guillermo Calderón, faz um mergulho no perfil mental do clã Pinochet — o que não desculpa, mas justifica — a loucura criminosa do Vampiro de la Moneda, o Conde Anticristo dos Andes.

Um disco gira na vitrola no ambiente inundado por uma escuridão maciça. A música é alegre, talvez uma fanfarra, e enquanto a câmera desliza pelo cenário até alcançar um livro cuja capa diz “Meu Caminho — Memórias de um Militar”, uma paródia, claro, ao “Minha Luta”, de Adolf Hitler (1889-1945). Vão aparecendo também vários porta-retratos, móveis vintage, bustos, até que o general, no quarto ao lado, desperta. A cena corta para o exterior, onde uma névoa densa paira sobre o rancho sinistro onde o monstro vive, no extremo sul da Patagônia.

Larraín aprofunda-se, enfim, no conceito da história, explicando que Pinochet está preso em alguma quadra de seu passado glorioso, relembrando o tempo em que desfrutava do sangue de gente de todas as partes do globo, até ter de abdicar do seu favorito, o inglês, que imediatamente o remonta a qualquer coisa do Império Romano (27 a.C. – 395 d.C.). Teve de se conformar com a seiva dos sul-americanos, do lumpemproletariado, amargo e com um aroma canino, segundo ele, um buquê plebeu que fica nos lábios e no céu da boca por semanas. Jaime Vadell equilibra-se bem entre a histrionismo que o personagem lhe demanda e a sobriedade de um vilão decrépito, isolado com Lucía Hiriart (1923-2021), a mulher, ainda mais perversa e inescrupulosa, com quem se casara, papel de Gloria Münchmeyer. O diretor oferece um rápido passeio pela vida marital dos dois, quando saem contentes da igreja onde se uniram em matrimônio.

Trinta anos depois, o general salva o Chile da infestação bolchevique patrocinada por Allende, tudo dito com o molho da ironia fina de Larraín, que vai introduzindo a vasta prole de Augusto e Lucía, que conhecem o segredo literalmente monstruoso do pai, com o qual não se sentem desconfortáveis — bem como não se incomodam com os multimilionários desvios de dinheiro público para 125 contas de bancos americanos. Na iminência da conclusão, Larraín alude a um improvável (e hilário) vínculo entre o Conde e Margaret Thatcher (1925-2013), quando a sagaz fotografia de Ed Lachman deixa o preto e branco e assume cor e brilho, mas sem nenhuma promessa de dias melhores para o gênero humano. Os aqui abaixo do Equador, em particular.


Filme: O Conde 
Direção: Pablo Larraín
Ano: 2023
Gêneros: Terror/Comédia
Nota: 10/10