A história mais impressionante da Netflix. Se não tocar seu coração, provavelmente é porque você não tem um Divulgação / Netflix

A história mais impressionante da Netflix. Se não tocar seu coração, provavelmente é porque você não tem um

A questão racial nos Estados Unidos tem cada vez mais novos — e terríveis — desdobramentos. Muito além dos dramas que se fazem conhecer logo que chegam às páginas dos jornais e aos noticiários da televisão, existem as tragédias que nunca mostram toda a gravidade de suas minudências mais injustas, mais torpes, e é por isso que filmes como “Strong Island” fazem tanto sentido. A população carcerária brasileira está prestes a atingir a triste marca de 800 mil detentos — quando a capacidade máxima é estimada em pouco mais de 440 mil, o que evidencia uma sobrecarga de quase 63%. Desses, cerca de 62% são pretos ou pardos, isto é, aproximadamente 450 mil presidiários têm essa característica étnica. No caso dos Estados Unidos, a situação é ainda pior. Os custodiados pelo poder público na América somam mais de dois milhões de pessoas, universo formado por 66% de negros; destes, apenas metade recebe assistência jurídica adequada, um absurdo com o qual não se pode transigir, uma vez que a ampla defesa constitui-se um preceito elementar da Declaração Universal dos Direitos do Homem, originalmente publicada em 1948 e filha da Revolução Francesa, cujo fulgor se espalhou pelo mundo entre 1789 e 1799. A impressão que fica à roda das digressões nada metafísicas de qualquer cidadão leigo, mas consciente, é que os pretos e pardos que restam, frequentando escolas e universidades (quando conseguem tal proeza), deslocando-se para o trabalho em ônibus cheios e velhos, indo à praia, a festas, à igreja, ao norte ou sul do rio Grande, desliza por uma zona de perigo cada vez mais abrangente, clama por justiça, por dignidade, por respeito, mas se contenta em permanecer viva. E nem isso consegue.

Yance Ford enfrenta a câmera de igual para igual numa investigação corajosa sobre a grande tragédia que vitimou sua família no começo da madrugada de 20 de maio de 1992. Antes, o diretor leva o público por um passeio pela história de sua família, aparentemente insólito, mas que serve de liga dramática ao que se vai assistir por 107 minutos de uma história que poderia ser feliz — se outra fosse a cor da pele de seus personagens. O avô, George Alexander Dunmore, um afro-americano cujos antepassados decerto faziam parte de alguma casa real do Daomé, morre de insuficiência respiratória por um ataque de asma no início dos anos 1940. O que parece uma funesta contingência da vida, claro, logo desnuda seu quê de perversão: Dunmore, apesar de uma óbvia tortura, roxo pela asfixia, puxando o ar inutilmente, morre no saguão do hospital, sem ser atendido. Sua família recolhe o corpo e volta para a casa humilde na periferia de Charleston, na Carolina do Sul, sudeste americano, onde uma menina de dois anos os espera. Barbara Dunmore, mãe de Yance, é quem concede as declarações mais estarrecedoras a respeito das inúmeras dificuldades de sua mãe e irmãos para se sustentar sem o braço paterno, debulhando folhas de tabaco, até desaguar em sua própria jornada, plena de lances gloriosos. Barbara consegue estudar, tem um baile de formatura, namora William Ford, homem dos seus sonhos, depois de anos de uma relação platônica — que ela fazia questão de alimentar — e os dois se casam. William, firme em sua aspiração de se tornar motorneiro, e Barbara, que conquista uma vaga como professora do ensino infantil, mudam-se para Nova York pouco depois do casamento, em 10 de julho de 1965, e William Junior nasce num apartamento do Brooklyn ao fim de dois anos.

Dinheiro não parece ser exatamente uma preocupação dos Dunmore Ford, ao menos no princípio da nova. Yance, um homem transexual que nunca expõe frontalmente o assunto, deixa de fora também a inescapável relação entre renda hipossuficiente e negritude (nos Estados Unidos!) e prefere seguir concentrando-se na empolgante narrativa da mãe, sem dúvida um exemplo para ela, Junior e a caçula Lauren. Esse é o pulo do gato para que se entenda a reação tempestuosa (e reprochável) de William Junior quando, aos 25 anos incompletos, parte para cima de um mecânico com quem deixara o carro numa oficina 24 horas de Long Island, na Região Metropolitana de Nova York, uma área ocupada em sua maioria por brancos. Mark Reilly, o dono do estabelecimento, alveja William Junior no pulmão esquerdo e então começa a luta de Barbara para que o assassino do primogênito receba a justa pena.

O crime permanece sob uma densa bruma de mistério que Ford só trata de dissipar na undécima hora, fazendo, inclusive, uma honrosa confissão. Dizer que a mãe foi a única que se empenhou pela condenação de Reilly não é, lamentavelmente, um exagero: William, sempre racional demais, cria não sem motivo, que o culpado, em sendo branco, acabaria por safar-se. As irmãs, ainda muito jovens, tinham que, antes de mais nada ganhar a vida — é uma constante ao longo de “Strong Island” a menção à vontade dos irmãos quanto a prestar concursos públicos e vencer pelo próprio esforço; inicialmente reprovado no certame para carcereiro no presídio de Rikers Island (onde Barbara já havia lecionado), Junior entra com recurso e é finalmente classificado, mas não toma posse. Numa sequência de alguns segundos reside a força desse documentário sobre um passado que não passa, como se o homem precisasse nascer e morrer cercado de ódio e estupidez.


Filme: Strong Island
Direção: Yance Ford
Ano: 2017
Gêneros: Documentário
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.