“Hirudo Medicinallis, Ou Carta Aberta de um Vampiro de Brinquedo ao Espectro de Orson Welles” é um romance sobre vampiros que não são vampiros. É um livro sobre enganos. Foi escrito por Ademir Luiz, mesmo autor de “Fogo de Junho”, livro que trata das grandes manifestações de rua que ocorreram no Brasil em 2013. O registro narrativo é totalmente diferente. Se “Fogo de Junho” é realista e politizado, “Hirudo Medicinallis” é uma inusitada e politicamente alienada mistura de gêneros: romance policial, fantasia, história de amor, livro ensaio. O autor despejou nele todas suas obsessões.
O livro, vencedor do Prêmio Cora Coralina de 2002 e relançado em 2022 pela Editora Novo Século, nasceu de uma reportagem televisiva sobre tribos urbanas. Mais especificamente sobre uma tribo urbana nova-iorquina que, no final da década de 1990, percorria a cidade incorporando o arquétipo do vampiro gótico clássico. Esses são os “vampiros de brinquedo” do título. Jovens impressionados e seduzidos pela própria rebeldia. Mas o que significa esse título? “Hirudo Medicinallis” é o nome científico de uma espécie de sanguessuga utilizado para fins medicinais há milênios, mais comumente da Europa. A relação vampiro — sanguessuga —vida — morte é evidente.
O protagonista do romance é um jovem estudante de filosofia que se integra a uma comunidade vampiresca, ou melhor, um grupo de pessoas que se autodenominam vampiros. Usam a mitologia vampírica da literatura, do cinema e do folclore para criar sua identidade. Agem e se vestem como vampiros, mas sem seus poderes e fraquezas tradicionais. São basicamente simulacros. Ficam acordados a noite, dormem durante o dia, usam patéticas dentaduras com caninos salientes e bebem cálices do “rubro”, uma bebida produzida a partir da mistura de vinho tinto abençoado por um sacerdote, vinho branco, groselha, morango e, é claro, sangue humano. Ninguém morre para que o drinque seja produzido. Pescoços intactos, basta uma gota de sangue para temperar a poção, normalmente doada por quem prepara.
O enredo se passa em uma cidade chamada Alexandria. Uma megalópole velha, suja e habitada por milhões de párias que vivem do crime e de sua tradição universitária. Há bibliotecas em abundância. Não por acaso, o personagem principal trabalha em uma. Usa seu acesso para traficar folhas de livros antigos, muito apreciadas para embalar e dar sabor para entorpecentes popularmente consumidas pelos estudantes de Alexandria.
O livro é narrado em primeira pessoa pelo protagonista que escreve uma espécie de carta aberta endereçada ao lendário diretor Orson Welles, criador do clássico “Cidadão Kane”. Falecido há quase quarenta anos, um irritadiço Orson Welles aparece em forma de espectro para o protagonista. Difícil saber se é apenas uma criação da mente do jovem, uma construção do inconsciente coletivo ou uma incorporação simbólica do imortal espírito do cinema. Só o Sombra sabe.
Após sua iniciação, o narrador assume a alcunha de Lorde Düsseldorf, um nome ironicamente aristocrático, inspirado em uma tese defendida por Jim Morrison, o lendário vocalista da banda The Doors. Os membros do grupo se sentem privilegiados, distantes do resto da humanidade e, automaticamente, designam-se como parte da realeza assim que se convertem a esse “vampirismo” fake.
Em dado momento, Lorde Dusseldorf conhece uma estudante do último ano de psicologia, Ariadne. Assemelha-se, à primeira vista, a atriz Theda Bara, uma popular diva do cinema mudo, que recebeu a alcunha de “Vamp”, em função de seus papeis de mulher fatal. Não vive um amor romântico arrebatador. Ariadne, nome que remete ao arquétipo do labirinto, muito mais culta e inteligente que o narrador, atua como uma consciência crítica que ele ignora. Sua preocupação primordial é integrar-se a comunidade dos vampiros, adaptando-se às circunstâncias criadas por seus novos amigos. Em especial Lorde Byron, o mais ousado entre eles. Inteligente, sedutor, sósia do jovem Marlon Brando e obcecado pela Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Essa obsessão vai levar ao enredo dramático principal do livro: um complexo plano para roubar o famoso quadro renascentista.
Ademir Luiz abunda o livro com referências e citações de vários tipos, principalmente relacionadas à música, literatura e cinema. Essas menções artísticas e históricas evidenciam a intenção do autor em imbricar o erudito com o mundo pop contemporâneo. Um bom exemplo é a disputa entre os moderníssimos trekkies, fãs do seriado “Star Trek”, profundamente mergulhados na cultura pop, e os tradicionalistas vampiros de Alexandria.
Em resumo, “Hirudo Medicinallis” é a trajetória de um simplório rapaz que um dia acreditou que seria salvo de sua própria mediocridade ao se tornar um vampiro, ainda que de brinquedo. Metáfora para os tempos que correm?