Um dos filmes mais tensos e angustiantes da história do cinema está na Netflix Divulgação / DreamWorks

Um dos filmes mais tensos e angustiantes da história do cinema está na Netflix

“Colateral” é um filme que, a um só tempo, desafia o pensamento e a imaginação. O filme de Michael Mann começa sugerindo um descompasso qualquer no momento em que Vincent, o personagem de Tom Cruise, deixa o aeroporto de Los Angeles e aproveita para trocar sua maleta com a de outra pessoa no saguão. Em seguida, Max Durocher, o taxista boa-praça vivido por Jamie Foxx, aceita Annie, de Jada Pinkett Smith, como passageira. Eles deliberam entre o amistoso e o desconfiado sobre por que o caminho o motorista deve seguir para chegar mais rápido ao destino de sua cliente, um prédio de escritórios no centro da cidade. Max e Annie fazem uma aposta: caso não cheguem num determinado prazo, a corrida fica por conta da casa — ainda que o roteiro de Stuart Beattie dê uma barrigada e não apresente o contraponto da personagem de Smith à oferta do condutor. O percurso defendido por Max é mesmo mais fluido do que Annie imaginara, ou seja, ela chega antes do que previa (e assim mesmo poupa seus dólares).

Apesar dessa imperícia de Beattie, o expediente de ludibriar o público e embalar “Colateral” com cenas que aludem a um romance, quiçá uma comédia romântica ou ainda um drama, surte efeito, principalmente na construção de Max. Com toda a astúcia, o chofer vai levando sua passageira no bico; os dois se abrem, logo já estão trocando inconfidências e sabendo detalhes insólitos da vida uma do outro. Ela diz a ele que é procuradora do Ministério Público, à véspera de um julgamento importante; Max, por seu turno, revela a Annie que, malgrado dirija profissionalmente há doze anos, seu maior sonho é abrir uma empresa de passeios turísticos, com sua própria frota de limusines. Talvez nasça uma grande paixão entre esses tipos carismáticos e inofensivos, talvez nunca mais se vejam — e essa segunda hipótese seria a única, uma vez que, por alguma razão, decerto por achá-la muita areia para a sua caçamba, ele não ousa pedir o telefone da beldade. Quase pode-se ouvir as lamentações do personagem de Foxx; decerto ele se julga um pobre-diabo, uma vítima do mundo, mas quando Annie bate à janela do carro e lhe entrega seu cartão de visita, também é possível sentir seu coração pulsar outra vez e as cores lhe afluírem ao rosto, elementos das ótimas performances dele e de Smith de que Mann lança mão para situar o filme no tempo, um tempo de muito mais elegância.

Ao cabo dessa demonstração de empoderamento feminino, com uma mulher que sabe exatamente o que pretende e o que deve fazer para conseguir, o filme retoma seu curso. Smith e Cruise voltam a trocar de posto, e Vincent reassume o primeiro plano, descendo de uma escadaria com Annie ao fundo, subindo. Max, por óbvio, também continua na história, com força crescente, e quem duvidava de que Foxx tivesse cacife para um papel que se vai revelando tão denso, tão complexo, tão cheio de penumbras dramáticas, queima a língua. Vincent, o homem da mala, embarca no táxi de Max, e como se dera com Annie num primeiro momento, os dois conversam amenidades. Mas o papo vai ficando esquisito: o passageiro, aparentemente um homem distinto, envergando um terno bem cortado, cãs prematuras na cabeça, portando-se com a verdadeira educação de um cavalheiro, sempre emoldurada por um sorriso espontâneo e luminoso, propõe a Max que dirija para ele ao longo da noite, a seiscentos dólares. O motorista parece inclinado a aceitar, mas sua expressão não disfarça que considera aquele um negócio de alto risco. Eles se entendem, afinal, e o que parecia um golpe de sorte na dureza da vida de Max se revela mesmo mais uma das inúmeras trapaças com que o destino o premia. Na sequência, a primeira reviravolta da trama desaba sobre ele, e a partir de então sua vida se resume a tentar prever os próximos movimentos de seu cliente, tão perdido quanto Seth e Richard, os irmãos delinquentes de “Um Drink no Inferno” (1996), de Robert Rodríguez.

Mann desenvolve o conflito que se abate sobre seu protagonista com habilidade, frisando no erro de Max, levado pelo erro de confiar num lobo em pele de lobo que não hesitaria um segundo em incluí-lo em sua lista de tarefas. Ninguém melhor para uma empreitada dessa natureza que Cruise e seu dinamismo, ator nada acomodado, sempre disposto a emprestar seu condicionamento físico a toda prova para seus personagens — existe sempre reservada para Cruise uma sequência a envolver corridas, além das contumazes escaladas, dos saltos no vazio e das homéricas trocas de socos e chutes, conforme registram as produções da franquia “Missão: Impossível”, especialmente “Efeito Fallout” (2018), levado à tela por Christopher McQuarrie —, sem prejuízo do aspecto mais cerebral da história, e da mesma forma acontece com Foxx, a pouco menos de três meses de incorporar o papel de sua vida em “Ray” (2004), drama sobre o músico Ray Charles (1930-2004), de Taylor Hackford, pelo qual ganhou o Oscar de Melhor Ator. A inocência de Max, pueril e tocante, definitivamente é uma péssima conselheira: ela é quem, outra vez, turva seu raciocínio e o faz acreditar que Vincent vai cair em si e dispensá-lo do turbilhão de balbúrdia para o qual o puxou; essa ingenuidade se alonga até o episódio na boate de Daniel, vivido por Barry Shabaka Henley, onde o vilão de Cruise e o tipo nebuloso de Henley partilham impressões sobre jazz e Miles Davis (1926-1991), uma de suas grandes lendas e, segundo o empresário, ex-frequentador do clube noturno quando Daniel era ainda só o faxineiro — aliás, há aqui uma piada metalinguística saborosa acerca das preferências musicais de Max, que ouve calado a conversa dos outros dois. Ao perceber que Daniel o engana, Vincent toma providências, da única maneira que sabe. É quando o texto de Beattie se volta para o esclarecimento de alguns segredos, com o personagem de Foxx um pouco mais esperto quanto plano obscuros de Vincent, um manipulador sagaz das emoções humanas, célebre por estar sempre muitas casas à frente da polícia, representada pelo detetive Ray Fanning, de Mark Ruffalo.

A visita de Vincent e Max a Ida, a mãe do taxista interpretada por Irma P. Hall, degringola a terceira guinada da narrativa, que por seu turno ramifica-se na bem elaborada passagem em que Max se passa por Vincent sem alimentar a desconfiança de Félix, o mafioso que contratara os serviços do algoz do motorista, de Javier Bardem numa participação dispensável. A poderosa lábia de Max é o que lhe vale para passar a perna no gângster e dirigir umas provocaçõezinhas inconsequentes aos capangas de Félix. Quando no mesmo quadro novamente, Cruise e Foxx reposicionam “Colateral” em seu eixo, e resta provado que as duas horas do filme poderiam ser só deles, com a oportuna e cálida presença de Smith no introito acolhedor, refeito no desfecho num diapasão menos tenso.

Junto com uma sensação de benfazeja nostalgia, “Colateral” deixa também a impressão de ser uma das produções com o elenco mais azeitado do cinema. Jovens, bonitos e talentosos, Tom Cruise, Jamie Foxx e Jada Pinkett Smith, nessa ordem, tiraram de letra todas as suspeitas que o público, a crítica e o próprio Michael Mann tinham a seu respeito e entregaram um trabalho admiravelmente coeso, emotivo, preciso, humano. O verdadeiro caso aqui é entre dois homens, cada um pleno de suas convicções sobre como deseja viver, com espaço para uma mulher, que se valoriza e vai além da superfície do que pode ver nos outros. Talvez filmes como esses estejam relegados a permanecer nas catacumbas sabe-se lá por mais quanto tempo. Cinema é arqueologia também.


Filme: Colateral
Direção: Michael Mann
Ano: 2004
Gênero: Drama/Suspense/Noir/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.