Aplaudido de pé, o filme brasileiro mais conhecido e premiado no mundo está na Netflix Divulgação / Lumière Brasil

Aplaudido de pé, o filme brasileiro mais conhecido e premiado no mundo está na Netflix

Clarice Lispector (1920-1977) foi um espírito dos mais invulgarmente caudalosos no corpo de uma mulher comum. As caminhadas da escritora pela orla do Leme de um Rio de Janeiro já sepulto nesse imenso cadáver que não para de procriar chamado Brasil tiveram sua grande medida de responsabilidade nas iluminações tenebrosas com que Clarice, essa alma essencialmente sombria (mas que gostava de sol), terminava de arrasar com suscetibilidades hipócritas da gente sabida de seu tempo. Publicado em dezembro de 1943, “Perto do Coração Selvagem” escrutina as primeiras descobertas de Joana, muitas, claro, relacionadas à paixão e ao sentimento amoroso mais elaborado, e à medida que o livro se agiganta e Joana torna-se mulher, o leitor percebe quão ingênua, quiçá tola, era a protagonista. O romance inaugural da prolífica carreira de Clarice tem inauditos pontos de contato com “Cidade de Deus”, um arrazoado de percepções de Paulo Lins sobre a favela homônima em que morou durante a infância pobre, muito longe do Leme — cujas redondezas Clarice também só passara a frequentar transcorridos muitos anos da publicação de “Perto do Coração Selvagem”, já desfrutando de prestígio literário internacional e da devida recompensa financeira, depois de um périplo pela Tijuca e por bairros menos nobres da Zona Sul carioca. Fernando Meirelles enxergou em Joana o queixo de Dadinho, autometamorfoseado em Zé Pequeno, e a partir dessa feitiçaria clariceana, o público depara-se com os segredos por ainda serem revelados do romance de Lins, do filme e do país que agrupa-nos todos, Clarices, Paulos, Fernandos, numa miséria para muito além do lado oeste da capital fluminense.

O roteiro de Bráulio Mantovani contrapõe Dadinho a Zé Pequeno e os dois a Buscapé, no movimento perturbador e estimulante que denota um refinamento narrativo cada vez mais bissexto em produções nacionais. Para traduzir isso em imagens, Meirelles socorre-se da tarimba dos muitos anos como diretor de comerciais de televisão para inventar suas próprias técnicas — foi justamente que registrou o inusitado encontro entre Pequeno e Buscapé, com Leandro Firmino da Hora e Alexandre Rodrigues em performances memoráveis, que, por ser o Brasil o que é, nunca mais tiveram a oportunidade de replicar. A sequência da fuga da galinha, investida de um patético aparentemente leviano e talvez até meio apelativo, culmina com o giro de câmera que lança o personagem de Rodrigues na Cidade de Deus de 1966, um assentamento precário nos cafundós de Jacarepaguá criado pela prefeitura depois das enchentes (que perduram até hoje), dos incêndios criminosos e, claro, para liberar o resto dos imóveis ainda ocupados por gente pobre de todo o país entre a Central do Brasil e a vizinhança da Praca Quinze de Novembro, os últimos remanescentes do novo ordenamento urbanístico proposto e levado a termo por Pereira Passos (1836-1913), alcaide de 1902 a 1906. O diretor de fotografia César Charlone abusa do sépia e da luz estourada das cenas gravadas numa perfeita reconstituição da favela de quase seis décadas atrás a fim de salientar um romantismo idealizado, flagrantemente contrário às cortes fortes e da movimentação sem descanso que a Cidade de Deus passa a ter ao cabo de dez anos. No começo desse segmento, Meirelles se estende sobre a atuação de um certo trio ternura, alusão irônica a um terceto de cantores da favela que ganha as paradas de sucesso. A música que Alicate, Cabeleira e Marreco gostam de tocar é aquela que vibra ao som de balas girando no tambor de um revólver já meio gasto, e é aí que a figura do futuro Zé Pequeno, mas ainda Dadinho, cresce e aparece. O diretor arranca de Douglas Silva a performance arrebatadora que Da Hora mantém, e galvaniza a psicopatia do antagonista central de uma história quase sem heróis. Na subtrama do assalto ao motel, destrinchada lances depois, resta claro que o personagem de Silva não há de se conformar em ser mais um marginalzinho pé-de-chinelo, e a transição que implica muito mais que a adoção de outro nome, num terreiro de candomblé, sela de vez sua sorte.

Buscapé é o típico mocinho de filmes tão parecidos com a própria vida que arrasta o espectador para um turbilhão de sentimentos constrangedoramente dialéticos. Ao passo que se torce para que sua carreira como fotógrafo vingue, findo algum tempo começa a tomar conta a dúvida sobre se vai mesmo resistir, primeiro ao assédio da bandidagem; depois, à violência estrito senso. Como se assiste ao longo de todo o terceiro ato, Buscapé, apelido do fotógrafo Wilson Rodrigues, persevera, aos trancos e barrancos, e como um Zé Pequeno com o sinal invertido, também garante seu lugar na história da Cidade de Deus. Tramas como essa seguem, lamentavelmente, atuais num país que produz Clarice Lispector, Paulo Lins e Fernando Meirelles, mas não é capaz de renunciar à indiferença fácil de elites bestializadas e algo fascinadas com delinquentes de todos os coturnos. Vinte anos depois, a polícia e os políticos só se dirigem às favelas para matar e angariar publicidade, como se a vida fosse um filme. Ou um eterno Carnaval.


Filme: Cidade de Deus
Direção: Fernando Meirelles
Ano: 2002
Gêneros: Drama/Policial
Nota: 9/10