Os traumas portugueses, segundo António Lobo Antunes   

Os traumas portugueses, segundo António Lobo Antunes   

Um dos grandes eventos no século passado foi, sem dúvida, a Revolução dos Cravos em Portugal. Em 25 de abril de 1974, enterrou-se um dos regimes políticos, o salazarismo, mais medíocres do mundo. Foram 41 anos de uma de ditadura clássica que fechou um país pequeno em si mesmo e sufocou toda uma geração no campo cultural. A volta da democracia representou um renascimento dos portugueses e o início de uma produção literária que revelou os nomes de José Saramago e de António Lobo Antunes.

Os dois nomes tornaram-se a vitrine de uma literatura renovada que chamou a atenção do mundo inteiro para a língua portuguesa, a partir do começo dos anos 1980. O fenômeno Saramago dispensa qualquer apresentação, sobretudo pelo Prêmio Nobel concedido a ele no ano de 1998. Bem poderia ter sido a premiação pela academia sueca de Lobo Antunes, igualmente relevante na “República Mundial das Letras” — o imenso mercado global de traduções e estudos acadêmicos que consagram autores e autoras. 

Os Cus de Judas
Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes (Alfaguara, 200 páginas)

Lobo Antunes ainda precisa de apresentações para o público leitor, incluindo o brasileiro que passou a ter acesso a suas obras com maior intensidade nos anos 1990. Não se trata de um escritor com aptidão para produzir “best-sellers”, algo que Saramago conseguiu alcançar mesmo com sua escrita difícil. O autor de “Memorial do Convento” e de “Ensaio Sobre a Cegueira” sabia como poucos fisgar leitores, a partir de histórias que remetem ao passado português e também aos grandes problemas contemporâneos.

A escolha de Lobo Antunes foi pelo caminho inverso ao de Saramago. Estão em jogo os traumas portugueses mais duros da Revolução dos Cravos, a guerra colonial na África, a experiência pessoal como médico psiquiatra e as tragédias de família. Ele sempre fez questão de se colocar no polo contrário ao autor de “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, puxando seus romances e suas crônicas para as urgências do presente, ainda que explore a questão da memória individual e de Portugal como um todo.

“Apareceram escritores, como o fenômeno Saramago, que é claramente um fenômeno partidário, um homem que misturou García Márquez com Umberto Eco, os piores aspectos de cada um deles, preparou um coquetel, à maneira do Campos Jr, que era um romancista histórico, e pronto, fez umas chazadas apoiado numa máquina. Passou-se assim o tempo do escritor para o da publicidade (aliás, o caso desse escritor é bem típico)”, disse Lobo Antunes, demarcando a distância em relação a Saramago.

Inferno de perto

Boa parte das obras de Lobo Antunes está disponível no mercado brasileiro. Para quem não conhece seu estilo muito particular, o recomendável é começar pelas crônicas. Nelas, o autor parece fazer uma espécie de laboratório para os romances, pois até mesmo títulos de futuras narrativas longas surgiram em textos breves publicados em revistas e jornais. No Brasil, há uma coletânea excelente nas livrarias: “As Coisas da Vida — 60 Crônicas” (editora Alfaguara), publicada em 2011.

As crônicas já trazem a pontuação e a divisão de parágrafos que marcam a escrita de Lobo Antunes nos romances, bem próxima de uma poesia. A narração entra em movimentos em espiral, mergulha na cabeça dos personagens e funde o passado com o presente. Mais importante: o autor está o tempo todo buscando o olhar para o que não é percebido pela visão cotidiana. A obsessão é pelo detalhe e pelos afetos que não ousam se manifestar — o que leva Lobo Antunes a ser associado a uma literatura agressiva.

Memória de Elefante
Memória de Elefante, de António Lobo Antunes (Alfaguara, 160 páginas)

“Em ‘Fado Alexandrino’ [romance de 1983], por exemplo, tentei contar a Revolução [dos Cravos] por trás, tentei fugir da facilidade, tentei apanhar o lado oculto das coisas, o lado menos espetacular, que poderia oferecer matéria romanesca melhor. Por exemplo, no que se refere à guerra colonial, os eventos mais espetaculares, ou que o seriam em termos cinematográficos, do ponto de vista de um Copolla [o diretor de cinema], na minha opinião, não são matéria romanesca, ou então não são um desafio tão grande, como a gente contar coisas menos espetaculares, mas que nos permitem lutar contra nós próprios e contra as nossas dificuldades”, afirmou Lobo Antunes.  

Os três primeiros romances seriam um só volume para tratar da experiência de um médico português que trabalhou em Angola, durante a guerra de independência do país, e retornou psicologicamente destroçado para Lisboa. É um narrador com traços autobiográficos nítidos em “Memória de Elefante” (1979), “Os Cus de Judas” (1979) e “Conhecimento do Inferno” (1979). Esses livros condensam a obra seguinte de Lobo Antunes, com os temas da revolução, guerra, hospital psiquiátrico e rupturas com a família.

A esses romances iniciais, junta-se o impressionante livro “Cartas da Guerra D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto — Cartas da Guerra” (2005), reunindo a correspondência de Lobo Antunes para sua primeira esposa Maria José, na época que estava em Angola. O volume foi organizado pelas filhas do autor (Maria José e Joana), após a morte da mãe, e virou o filme “Cartas da Guerra” (2016), de Ivo Ferreira, disponível no Prime Video. É possível ver o que é um inferno de perto, tanto no plano individual, como no coletivo.

Portugal pelo avesso

Na obra subsequente, alguns romances se destacam no que pode ser visto como um acerto de contas de Lobo Antunes com o país. O citado “Fado Alexandrino” conta, por exemplo, a história de um jantar no qual quatro militares rememoram a vida de 1972 a 1982, das guerras na África até o pós-Revolução dos Cravos. Após o narrador que fala muito e se angustia, surgem as várias vozes para construir os relatos. Essa multiplicidade de pontos de vista é a forma recorrente ao longo dos livros do autor.  

O romance “Auto dos Danados” (1985) trouxe a história de personagens que fugiram de Portugal após o 25 de abril de 1974. Situações vexaminosas e condenáveis de quem tentou escapar das responsabilidades por atos do passado. Trata-se dos covardes que barbarizam nas ditaduras e, depois, se escondem pelos cantos. O livro é, sem dúvida, um dos mais impressionantes de Lobo Antunes, que se enfia nos baixos instintos do ser humano — no caso os de uma elite portuguesa. 

As Naus
As Naus, de António Lobo Antunes (Alfaguara, 184 páginas)

Em “As Naus” (1988), o autor criou a narrativa delirante que imagina o retorno a Portugal de personagens históricos como Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Diogo Cão e Vasco da Gama. A volta deles, porém, ocorre após 1974 e na descolonização da África. Aquele país que se imaginou grandioso, com um destino marcado, é revirado por Lobo Antunes, cuja intenção declarada sempre foi a destruição de lemas do salazarismo (Honra, Pátria, Família), as palavras centrais usadas pelos diversos fascismos.

Nos anos 1990, apareceram mais romances impecáveis de Lobo Antunes, que seguiu remoendo o passado e o presente português. “O Manual dos Inquisidores” (1996) é a história da família que barbarizou nos tempos do salazarismo. Em seguida, “O Esplendor de Portugal” (1997) descreveu a fauna humana nos últimos anos de Angola como colônia, ou seja, a barbárie dos colonizadores. Já “Exortação dos Crocodilos” (1999) reuniu quatro vozes femininas para tratar de um grupo terrorista de direita nos anos 1970.

A partir dos anos 2000, a impressão é que Lobo Antunes está burilando ainda mais a linguagem em seus romances. O ritmo da produção é alucinante. Parece que temos as histórias de sempre de um Portugal, que viu a derrocada nos anos 1970 e tenta se ajustar às formas de vida europeias. De “Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura” (2000) ao recente “Tamanho do Mundo” (2022), são vinte romances que, para muitos, o autor vai produzindo para criar variações de muitas vozes e dos mesmos temas.

Aos leitores brasileiros, António Lobo Antunes é fundamental para mostrar como se pode trabalhar a memória histórica de uma sociedade e a dissolução dos personagens no mundo contemporâneo. É uma arte a habilidade de elaborar os traumas sociais e individuais — algo que o Brasil demonstra uma incompetência gigantes. Os argentinos e os chilenos aprenderam de forma árdua a importância de lidar com as dores e as cicatrizes em carne vida. E nenhum espaço é tão aberto a essa tarefa como a literatura e as artes.