O filme da Netflix que te levará para dentro dele fará 85 minutos parecerem o resto de sua vida Divulgação / Levitate Film

O filme da Netflix que te levará para dentro dele fará 85 minutos parecerem o resto de sua vida

Ninguém está a salvo dos tantos reveses da vida, a despeito de idade, estrato social, boas condições de saúde ou anos de sessões com terapeutas caros. A protagonista de “Em Busca de Mim”, como escancara o título do drama cheio de notas entre mordazes e quase trágicas do holandês Michiel van Erp, encontra-se, a exemplo de muita gente pretensamente bem-resolvida e bem-sucedida mundo afora, perdida no labirinto de sentimentos que se estreita mais e mais conforme torna-se mais inescapável a evidência de que a vida seguiu à revelia de nossas egocêntricas vontades, de que o mundo, aos trancos e barrancos, evoluiu a despeito de nossas inseguranças mais avessas à lógica, de que os problemas com os quais não se consegue lidar no transcurso de anos viraram um detalhe com que ninguém pode se preocupar, senão nós mesmos. Van Erp põe essa mulher em situações tão comuns e ao mesmo tempo tão sofisticadas que é impossível que em algum momento o espectador não se reconheça e não se sinta também assombrado pelos fantasmas cuja sombria força só ele conhece e de que só ele pode defender-se.

Adaptado do romance da também holandesa Saskia Noort, o roteiro de Paula van der Oest e Roos Ouwehand dá a Elise Schaap os poderes mágicos de flertar com perigo e sempre sair por cima, e à medida que a história toma corpo, se vai ver que esse seu dom permeia sua vida desde o início. Com a abertura, à “Titanic” (1998), de James Cameron, tem-se a sensação de que Sara, a personagem de Schaap, é mesmo só mais uma dondoca um tanto desnorteada por, outra vez, ter de encarar ausências que hão de transformar sua vida novamente. Ao casamento esfacelado juntam-se os desacertos com a filha adolescente, e à exceção das cenas em que a protagonista parece inesgotavelmente disposta em recuperar o tempo que não volta das maneiras mais imediatistas — e equivocadas —, “Em Busca de Mim” assemelha-se bastante, na forma e no conteúdo, a “A Filha Perdida” (2021), onde Maggie Gyllenhaal dispõe de cenários paradisíacos a fim de enaltecer as dores tão ocultas e muito particulares de uma mulher.

Sara está em Stromboli, a terra de Eólo, personagem da “Odisseia”, de Homero (928 a.C. – 898 a.C.), onde Ulisses aporta voltando da guerra, tentando também ela apaziguar seus demônios. Essa pequena ilha ao norte da costa siciliana, no extremo sul da Itália, dorme um dos três vulcões ainda ativos no país. Batizado com o nome da ilha, esse gigante furioso aprisionado nos intestinos da Terra revolve-se em silêncio, o que é bom sinal, mas Sara faz todo o barulho que pode. Muito mais viva que Stromboli, ela consegue, depois de uma chegada estrepitosa, ficar sem a bolsa em que estavam dinheiro, celular e passaporte depois de uma bebedeira com Harold, o milionário com quem troca confidências vivido por Tim McInnerny, indispor-se com Pietro, o dono do chalé que aluga, e acaba parando na igreja local, onde Jens a resgata. O encontro com o personagem de Christian Hillborg é decisivo para a elaboração do argumento central do texto de Van der Oest e Ouwehand, momento em que Hillborg passa a encarnar figuras ora demoníacas, ora salvadoras, numa sucessão de metáforas referentes a, claro, perder-se e encontrar-se (ou reencontrar-se) numa história que se debruça de forma surpreendente e nada óbvia sobre os traumas que homens — e em especial mulheres — não podem dividir com mais ninguém.


Filme: Em Busca de Mim
Direção: Michiel van Erp
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10