Roteiro simplificado para ler Lima Barreto

Roteiro simplificado para ler Lima Barreto

Certa feita, ao término da conferência apresentada no Centro de Convenções de Cordisburgo-MG, a convite do diretor da Casa-Museu Guimarães Rosa, Ronaldo Alves, sob o título de “Diadorim — A Reinvenção de Dom Quixote de La Mancha (Reflexões ficcionais sobre o mito da Távola Redonda em Grande sertão: veredas)”, fruto da minha pesquisa de pós-doutoramento que teve início na Universidade Clássica de Lisboa-Portugal, um senhor de meia idade de cabeça branca, simpático e bem trajado, adentrou o palco do auditório, dizendo-me de supetão: –– Quando eu falar o meu nome, você irá me reconhecer imediatamente, em razão de meu falecido pai ter sido considerado um dos mais importantes intelectuais de seu tempo de glória. Chamo-me Alceu Amoroso Lima Filho, filho do ilustríssimo Tristão de Ataíde. –– sublinhou o interlocutor pseudônimo afamado. 

Já no almoço do restaurante Sarapalha, lembrei-lhe de que fora Tristão de Ataíde quem sintetizou elucidativamente que o autor de “Clara dos Anjos” se enquadraria na categoria dos grandes autores por escrever nas entrelinhas…  

De fato, logo em seu livro de estréia, intitulado “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, se detecta, a partir do título, uma proposição de diálogo que se instaura entre a certidão de nascimento da Ilha de Vera Cruz — a Carta de Pero Vaz Caminha —, e o registro ficcional que se arvora a buscar uma nítida ruptura com a tradição literária vigente, para muito além do que diz respeito ao contexto biográfico. Daí a urgência de se observar o processo dialógico explicitado pelo viés do elemento metafórico, que desaguará na composição de sua obra-prima Triste fim de Policarpo Quaresma. Neste sentido, o mais aconselhável seria atentar para proposição estética de “Triste Fim”, a partir do subterfúgio narrativo utilizado por Miguel de Cervantes, em “Dom Quixote de La Mancha”; e por Flaubert, em “Madame Bovary”.

Em se tratando da escritura por entrelinhas aventada por Alceu Amoroso Lima, a obra literária “Triste fim de Policarpo Quaresma” vem a ser arquitetada pelo viés da reinterpretação da História pátria, que se alicerça em conduzir o Leitor pelo subterfúgio quixotesco da criação de um personagem romântico fora de sua época, alcunhado de Ubirajara em sua repartição pública, por alusão ao projeto de nacionalidade proposto por José de Alencar e Gonçalves Dias. Ao se municiar intelectualmente da biblioteca utilizada pelos ícones do Romantismo — eis a reprodução da estratégia narrativa de Cervantes para desestabilizar as novelas de cavalaria medievais e de Flaubert para fundação do Realismo —, a partir da leitura dos registros da Literatura de Informação, desde Jean de Lery, André Thevet, Hans Staden e Rocha Pita ao legado alencarino e gonçalviano, na construção do Mito do Bom Selvagem.

Destarte, os matizes patrióticos que demarcam os arroubos ufanistas do Major Quaresma, a todo instante, se perfazem pelo interdiscurso da radicalização sem ideia do ridículo, cujas alusões se referem ao episódio da substituição idiomática da Língua Portuguesa emprestada ao Brasil pelo Tupi-guarani originário deste Terrae Brasilis. Caberia acrescentar, ainda, que tal menção linguística se ancora na reivindicação romântica referente ao afastamento da sintaxe lusitana. No tocante à formação estrutural, o romance “Triste Fim” se inscreve através de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, com simbólica inversão das partes denominadas “A terra” e “O homem”, de vez que Lima Barreto inicia a narração com a descrição dos excêntricos costumes de Policarpo Quaresma, que irá se pautar pelo patriotismo exacerbado que, conforme muito bem ressaltou Silviano Santiago, será inspirado na sentença profética de Vaz de Caminha: “Nesta terra, tudo que se planta dá…” 

Posteriormente, o Leitor deve atentar para a escritura de “Vida e Morte M. J. Gonzaga de Sá”, sobretudo quando Lima Barreto se afigura como um exímio perscrutador da alma humana, na tentativa de aproximar-se do mestre Machado de Assis, criador de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”. Ainda que não o tolerasse como figura pública, sem sombra de dúvida, o “Gonzaga de Sá” vem a ser o livro mais machadiano de todo o seu espólio ficcional, à medida que se predispõe ao diagnóstico de análise da anatomia da condição humana. Ainda que sobrevivesse à sombra de um gênio da estirpe de Machado de Assis, o marginalizado Lima Barreto também registra ao menos duas pérolas do gênero conto, que são “A Nova Califórnia” e “O Homem que Sabia Javanês”, além do instigante “Um Especialista”.

Enfim, ao desfechar o artigo, faço minha as palavras do indômito autor suburbano, o magnífico Afonso Henriques de Lima Barreto, para justificar a homenagem que lhe presto neste roteiro simplificado: “A única crítica que me aborrece é a do silêncio, mas esta é determinada pelos invejosos impotentes, que foram chamados a coisas de Letras, para enriquecerem e imperarem”.